O cheiro da chuva
Afonso Loureiro
O olfacto, por estar ligado às regiões mais primitivas do nosso cérebro, é responsável pelas memórias mais marcantes e duradouras. Aliás, o cheiro da terra é algo que todos os que viveram uma temporada em África recordam com saudade. Talvez não seja do cheiro em si que tenham saudades, mas sim de todas as emoções que trazem à superfície. A imponência da paisagem liga-nos à terra de uma forma indiscritível e recordar a terra é recordar essa sensação de pertença ao mundo.
Já senti o cheiro da terra e, apesar de ser incapaz de o descrever, sei que recordarei o local onde o senti da primeira vez quando me voltar a cruzar com ele. Como todas estas memórias sensoriais telúricas, não há maneira de as partilhar totalmente com ninguém. É preciso senti-las e dar-lhes liberdade para nos tocar lá no fundo e remexer à vontade.
Esta noite choveu em Luanda. Caiu uma chuvada tropical de gotas grossas e quentes que depressa se juntaram no chão e formaram rios onde eram estradas e torrentes furiosas onde eram leitos secos. O lixo que se acumulava nas valas e nos rios foi arrastado para o mar. As ruas secaram. O Sol regressou. As cigarras encheram o silêncio da cidade presa na lama. Ainda não circulavamNão senti o cheiro a terra molhada. Cheirou-me a asfalto e lixo revolvido. Cheirou-me a miséria e percebi que esta não é a África que quero recordar.
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