Abutrenas
Afonso Loureiro
A mais fácil circulação no pais com o fim da guerra e a estabilização da inflacção, associada ao estímulo proveniente da falta de transportes públicos eficientes e pela recuperação das estrada têm incentivado a procura de carro próprio por mais gente. A procura é tão grande que nem a crise conseguiu abrandar a enxurrada de carros usados que todos os meses chega aos portos angolanos.
A melhoria das vias periféricas que ligam Luanda ao resto da província tem reduzido muito o tempo necessário para chegar à cidade. Longe vão os tempos das odisseias de sete horas ao volante para percorrer os doze quilómetros que separam Luanda de Viana. Ao ser mais fácil chegar a Luanda por meios próprios, viajar apertado dentro de um candongueiro é cada vez menos convidativo.
Se chegar à cidade se tornou mais fácil, circular dentro dela tornou-se um pesadelo que não mostra sinais de vir a melhorar. Por muitas estradas que se reparem ou avenidas que se alarguem, o centro económico continua na cidade baixa.
Os ministérios, conservatórias e outros organismos públicos, os hospitais, as empresas de água e electricidade e grande parte das lojas especializadas estão concentrados entre a baía de Luanda, a fortaleza de São Miguel, o São Paulo e o alto da Maianga, mais ou menos dentro do limite urbano da Luanda colonial. Quem quer tratar de alguma coisa tem de ir lá.
Com cada vez mais carros a circular e o mesmo espaço para os estacionar, arranjar um lugar para deixar o carro enquanto se resolvem as coisas tornou-se uma tarefa quase impossível. Encontrar um lugar legal ainda é mais difícil, razão pela qual a grande maioria dos sinais de proibição de estacionamento são encarados como decoração pelos condutores mais desesperados.
Em Luanda não se deixam multas de estacionamento nos pára-brisas dos carros. A polícia sabe que, se não apreender os documentos da viatura ou do condutor, a multa (ou gasosa) nunca será paga. A única solução é rebocar o carro e esperar que o dono o vá buscar. Os condutores sabem que vale a pena arriscar. Não há muitos reboques e, mesmo com batedores a abrir caminho, com o trânsito infernal da cidade não conseguem rebocar muitos carros por dia. As probabilidades de sair impune da transgressão são elevadas. Um carro estacionado indevidamente respira mais impunidade que um candongueiro em contra-mão, o que já de si aparenta ser um crime sem castigo.
Os reboques de Luanda apresentam muitas semelhanças com duas espécies de animais sobejamente conhecidas: os abutres e as hienas. Para além de necrófagos, por se alimentarem de animais mortos ou carros parados, os reboques também atacam em bandos, daí ser uma questão de justiça baptizá-los de abutrenas.
Em certas ruas estratégicas, escolhidas pela polícia por permitirem um rápido carregamento do reboque, surge um cortejo de abutrenas. Meia-dúzia de reboques de cabina amarela seguem em filinha pirilau e param à frente do primeiro carro mal estacionado. Depois, como uma cadeia de montagem, o último reboque carrega o primeiro carro da fila e parte, altura em que todo o cortejo recua uns metros e repete a operação. Retira-se um carro de cada vez até que a rua esteja desimpedida ou se tenham acabado os reboques. Habitualmente é o primeiro critério que se usa porque entre descarregar o carro no parque da polícia e regressar demora umas horas.
Como tempo é dinheiro e o dono do carro não está a ver, não há meiguice para ninguém. Se o carro não sobe só com o guincho porque está travado e engatado, até se pode fazer marcha-atrás com o reboque e tentar raspar o carro do chão. No final da operação a rua está cheia de marcas de pneus arrastados e sulcos no asfalto onde o reboque raspou a rampa. Maltrata-se o carro e o próprio reboque, mas os necrófagos não são conhecidos pela delicadeza com que tratam as vítimas. Quando o material partir, ninguém vai saber como foi, sempre assim esteve, eu não fui e o estado depois dá um novo.
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