Aerograma

Isento de Porte e de Sobretaxa Aérea

11  02 2010

Editoriais raivosos

Há coisas sobre as quais tenciono escrever, mas nunca começo por achar que ainda não sei o suficiente para abordar o assunto. Outras vezes preparo rascunhos ou termino mesmo artigos inteiros e acabo por ir adiando a publicação em jeito de censura prévia porque, apesar das aparências, em Angola ninguém é verdadeiramente livre de dizer ou escrever o que pensa sem que lhe caiam em cima com os piores insultos e ameaças, especialmente se for estrangeiro ou tiver a cor errada.

Um destes temas que tentei esquecer acabou por ganhar vida própria e voltou para me morder os calcanhares. Durante uma semanas foi um rascunho curto, mas agora é a altura de lhe dar um pouco de atenção.

Para melhor perceber o país, sempre que tenho oportunidade leio os jornais angolanos. Os privados são quase todos semanários e o único diário é o Jornal de Angola, que não esconde ser o porta-voz do partido, que é a mesma coisa que dizer do Governo. Ora foi neste mesmo jornal que me apercebi de um padrão nos temas dos seus editoriais.

Reparei que dia-sim, dia-não, o editorial fazia uma referência a Portugal. O complexo pós-colonial ainda não abandonou aquela redacção. Ora era porque em Portugal não se falava de Angola, ora era porque se falava mas não se elogiava a sua grandeza, ora era porque se falava, elogiava, mas não com a sinceridade e reverência desejada. Outras vezes criticava Portugal pelo desprezo a que tinha votado a antiga colónia, não lhe prestando auxílio devido durante esta crise e noutras ainda, por achar que estava a emprestar dinheiro ao país apenas por interesses neo-colonialistas. Acusava as redacções dos jornais e estações televisivas portuguesas de só dar tempo de antena às críticas a Angola e de sofrer de recalcamentos colonialistas. À falta de mau da fita, o colono é o culpado de tudo. Como de costume.

Pelo teor dos textos, compreendi que a obrigação de Portugal inteiro era perfilar em sentido, com a mão atravessada no peito e olhos esperançosos a mirar o céu, e gritar «Angola é a maior Nação do mundo!».

Porque achei que talvez estivesse a ler mais do que estava escrito e podia estar a interpretar coisas ao sabor de eventuais frustrações no trânsito, nas falhas da internet ou outras quaisquer, resolvi deixar o artigo no limbo. Outros assuntos preencheriam o seu lugar e escusava de despertar os rancores habituais.

Quase me tinha esquecido dele quando ocorreu o atentado em Cabinda. Algumas semanas mais tarde foram emitidos os mandados de captura internacionais e o editorial do Jornal de Angola voltou a apontar as baterias para Portugal, os jornais portugueses e, como novidade, a França. Os textos foram tão corrosivos e insultuosos que acabaram por merecer mesmo uma reclamação do Embaixador de França. Percebi que não era apenas a minha interpretação.

Uma coisa é ter liberdade para escrever o que se quiser. Outra coisa bem diferente é abusar dessa liberdade para insultar ou ofender gratuitamente. O caso ainda é mais grave devido à associação entre o Jornal de Angola e o Estado. Um porta-voz oficioso não pode comportar-se assim. A não ser que aquilo não seja para ser levado a sério.

Acerca do autor

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Nascido no século passado com alma de engenheiro, partiu para Angola, de onde envia pequenos aerogramas.

11 respostas a “Editoriais raivosos”

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  1. Sim! Agora é que tocou na ferida! Espreitar o seu blogue…faz parte do meu ritual matutino! Parabéns!

  2. Oi!…
    Garanto que continuo a dar a minha voltinha matinal por aqui.
    Excelente texto, análise perfeita …visão correcta.
    Está tudo dito. Comentários para quê?
    Penso, contudo, que o problema não é só de Angola. Por cá, também temos fantasmas semelhantes. Com as devidas adaptações há a tendência para achar que os outros são sempre os culpados, não daquilo que corre mal, mas daquilo que se acha que não corre bem. Não daquilo que está mal, mas daquilo que se acha que não está bem.
    Noutra vertente, por muito que os de fora não encontrem razões para dizer mal de Portugal, há sempre portugueses (com responsabilidade) que insistem em trombetear aos quatro cantos do mundo que somos uma cambada…

    Um abraço.
    E.C.

  3. Só não entendo uma coisa. Essa terra onde estás é tão má, e tu não sais daí? Eles são tão maus e não te fazem mal? É estranho. Porque da forma que relatas essa terra, eles já te deviam ter metido num aerograma e metido de regresso, sem antes de te darem umas surras. Mas ao invés disso ao fim do mês quem é enviado deve ser o teu salário para a cá. hihihi

  4. Estranho é que só me mandam regressar quando critico. Se digo bem, ninguém se pronuncia…

  5. Não sei porquê mas denoto uma certa analogia com o papel de alguns chefes:
    – Se corre tudo bem, não fazes mais do que a tua obrigação, portanto não há lugar para elogios;
    – Quando as coisas correm mal mói-te a pinha até dizer chega, quer seja, ou não, culpa tua.

  6. Muito bem escrito. Como sempre|

  7. Quem não está bem consigo próprio não pode estar bem com os outros.

    Evidências são evidências e factos são factos, o que escreve esse jornal não representa nem de perto nem de longe aquilo que é o nobre povo de Angola. Por isso não é para ser levado a sério, claro.

    Abraço.

  8. Os meus parabéns pelo artigo!
    Tenho pena, mesmo muita pena… que volvidos tantos anos ainda exista esse complexo em Angola.
    Mas gostava de esclarecer que agora tal como há 30 anos Angola não se deve analisar pelo que se observa, se ouve, ou se pensa da população de Luanda. Infelizmente agora como há muitos anos também alguma comunicação social acentua a minha anterior afirmação. Não é assim cazenga?!
    Enfim, calculo que já tenha chegado a essa conclusão.
    Os meus melhores cumprimentos.

  9. Mais uma vez parabéns muito resumidamente disse tudo… Isto é a realidade de Angola mas já agora agora se somos nós os colonos os culpados de tudo porque será que continuamos a ver pedidos de pessoal técnico e formado para cá(Angola)? Apenas num site havia ofertas de trabalho nada mais nada mesmo que 100 pessoas e portugueses!!!!!!!!!!!
    E quando falam de ajudas será que se referem a mais perdões de divida? Mas porquê? Se este país é tão rico…

  10. Esquecer a História não é bom, mas remoer no passado não é melhor.

  11. La está uma daquelas batatas quentíssimas.
    Como angolana fazia-me espécie esse vínculo JA/MPLA
    até que percebi que o JA tal como a RNA são Pessoas Colectivas com fins Políticos, eles são criados para veicular informações sim, mas numa perspectiva estadista, o seu propósito é este mesmo.
    Se é correcto?? tenho as minhas dúvidas, mas olhe que é viável.
    Mas pondo a minha costela nacionalista a funcionar(va la confessem que dá a todos, pq vivi em Portugal) sei o que a casa gasta, os portugueses so de si ja gostam de falar mal,é o pais onde quem for o mais doente,quem tiver mais dívidas quem for o mais coitado ganha.. e disso resulta um hábito meio estranho de estarem sp em lamúrias e com isto quero dizer que as vezes vocês querem a cabeça dos imigrantes mesmo sem razões, tal como aqui,agora esperariam que alguem menos calmo não tomasse essa posição de vai-te embora após críticas?em que mundo meus senhores?
    Saudações aerograma..ja agora…gosto muito do seu blog..vou tentar vencer a preguiça e o ódio a esta máquina maravilhosa ,que tanto nos dá, como tira

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