As histórias das cicatrizes
Afonso Loureiro
Calhou em conversa falar de cicatrizes, das pequenas marcas que vão povoando o nosso corpo à medida que aprendemos as leis da física da forma mais dolorosa. São condecorações atribuídas pelo mundo à experiência adquirida e quase todas nos trazem memórias vívidas do momento em que a pele cedeu e mordemos os lábios para não berrar.
Cicatriz
Ao longo de três décadas fui coleccionando a minha dose de cicatrizes: cortes nos dedos, arranhões fundos, pontos cirúrgicos e falhas no cabelo. Aprendi bem cedo que garrafas partidas e canas acabadas de cortar abrem golpes fundos em dedos de menino inconsciente. Usar a cama dos pais como trampolim pode acabar com um sobrolho ao peito e que as bicicletas alheias são mais duras que o crânio próprio. Chaves de bocas em sítios apertados resultam em nós dos dedos esfolados e nem sempre cortar coisas duras com o gume da faca para fora é garantia de que não haja um dedo em risco. Em primeira mão soube os efeitos provocados pelas picadas de variados insectos e aracnídeos e descobri também que, apesar de não deixar cicatriz, enfiar facas em torradeiras não é saudável. Quase posso estabelecer uma cronologia do acidente só de olhar para as mãos.
Cicatrizes
As marcas do uso que vão ficando nas coisas são as cicatrizes do mundo que nos rodeia. Talvez por isso as ruínas e as coisas esquecidas me interessem tanto. As paredes velhas abrigam muitas histórias, algumas das quais só mesmo as cicatrizes ficaram para que as imaginemos.
Esqueceste-te do pulso que já não dobra…
Esse também tem duas cicatrizes da cirurgia. Não ficou esquecido.