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27  04 2011

O sinal de trânsito mais antigo

É dado adquirido que não sabemos estimar o património. Só nos preocupamos, se para aí estivermos virados, depois das paredes arruinadas e dos edifícios demolidos. Mas esta é a forma natural de evolução das cidades, com os velhos edifícios substituídos por outros antes que alguém se aperceba do seu valor ou chegue a sentir a sua falta. Felizmente que também se rasgam novas avenidas, deslocando os centros das cidades para novos bairros, diminuindo o interesse pelas zonas mais antigas, que acabam ignoradas pela vida no resto da cidade. As marcas que resistem de épocas passadas sobrevivem da incúria, da falta de vontade de destruir o antigo para fazer o novo.

Esta não é característica exclusiva dos portugueses. Cidades inteiras caíram no esquecimento e são lentamente desenterradas por gerações de arqueólogos armados de pequenas pás e sonhos de glória.

Mas as marcas do passado não se limitam a edifícios inteiros. Há outras, mais pequenas, que subsistem por falta de uso a dar-lhes depois do seu propósito original se perder. Algumas vêem-se recicladas, como grande parte das estátuas de Roma que, durante a Idade Média, foi sendo transformada em cal ou entulho para enchimento de paredes – à falta de melhor destino.

O Futuro de cada centro urbano está cheio de pequenas cicatrizes, verdadeiras marcas de carácter que testemunham vidas passadas da cidade. São as estátuas mutiladas, os reclames de negócios falidos ou anacrónicos, ou os símbolos de municípios extintos.

Quando procurava documentar um artigo acerca da freguesia da Sé de Lisboa, tive notícia de uma destas cicatrizes desprezadas. Está escondida na Rua do Salvador, que foi importante há quatro séculos, quando ligava as portas do Castelo de São Jorge à Baixa. Hoje em dia é uma pequena travessa cheia de prédios arruinados entre a Rua das Escolas Gerais e a Rua de São Tomé. A meio da pequena subida há um edifício fora do alinhamento dos restantes que a estrangula. No tempo de D. Pedro II este estreitamento era causa de muitas discórdias entre os carroceiros que subiam ou desciam a rua. Se dois se encontrassem a meio nenhum cedia passagem, uma vez que era tarefa difícil fazer recuar os animais.

Para evitar discórdia, foi publicado édito real estabelecendo a prioridade a respeitar em tal situação. Numa parede próxima do estreitamento, lavrado em pedra, foi afixado o que julgo ser um dos mais antigos sinais de trânsito do mundo. Desta época, não encontrei notícia de nenhum outro sinal de cedência de prioridade que sobreviva.

salvador
O sinal

«ANO DE 1686
SUA MAGESTADE ORDENA QUE OS COCHES SEGES E LITEIRAS QUE VIEREM DA PORTARIA DO SALVADOR QUE RECUEM PARA A MESMA PARTE»

Por não se lhe ter encontrado préstimo todos estes anos depois do Castelo de São Jorge deixar de albergar o Rei ou da Rua do Salvador ter sido despromovida a travessa, o sinal foi-se aguentando. Hoje está ingloriamente escondido atrás de um armário de distribuição de electricidade, mas antes escondido do que destruído.

Acerca do autor

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Nascido no século passado com alma de engenheiro, partiu para Angola, de onde envia pequenos aerogramas.

Uma resposta a “O sinal de trânsito mais antigo”

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  1. 🙂
    Há semanas que não vinha cá! Gostei muito do artigo!

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