O poleiro desaparecido
Afonso Loureiro
Cresci num pacato bairro dos arredores de Lisboa. Passei a infância a brincar no quintal, a escavar minhocas e a mostrá-las à minha mãe, que me dizia, com um sorriso amarelo «Sim, sim, são muito bonitas, agora vai lá pô-las outra vez.»
As formigas, as lagartas e as aranhas eram entretenimento para uma tarde inteira, embora algumas tenham sido vítimas da crueldade inocente que alimenta a curiosidade das crianças. Foram as suficientes para me lembrar disso, mas não tantas que me tenham deixado com problemas de consciência – meras vítimas da curiosidade científica.
Recordar as maldades que fiz aos bichos trouxe-me à memória a primeira discussão filosófica que tive com o meu pai. Foi exactamente sobre a licitude da experimentação em animais e concluímos que nalguns casos era admissível, mas quando feita apenas para demonstrar o que já se conhece resume-se a crueldade. Pouco depois desta conversa as aranhas do quintal deixaram de aparecer pernetas. Já sabia que sem patas ficam surdas.
Trepei aos ramos mais altos de todas as árvores, mas a minha preferida sempre foi o limoeiro que, em momentos de maior afoiteza, dava para subir por um dos ramos finos e passar para o telhado do anexo. Os pardais usam-no como poleiro enquanto esperam pelo momento mais oportuno para ir saquear a tijela do cão, isto é, pousam só para saber se há muito movimento, porque o rafeiro parece não se incomodar com os gatunos alados, quer sejam pardais, melros ou pombos.
Este limoeiro, mais velho que eu, é uma das árvores que mais me preenche a memória. Emoldurava a vista da janela da casa-de-banho e pareceu-se com uma árvore normal até ao dia em que um dos ramos mais grossos se partiu. Ficou reduzido a um ridículo ponto de interrogação arbóreo, carregado de limões grandes e amarelos, que ameaçava partir-se a cada tempestade mais violenta. Resistiu a todas.
O poleiro-limoeiro em dia de chuva, ainda com os ramos todos
Esta semana, sem ventania merecedora desse nome, o último ramo tombou sem alarido. O ramo carcomido pela idade e pelos bichos torceu-se até cair por cima do muro do vizinho. Do limoeiro sobrou o tronco curto, quase oco, e um pequeno raminho coberto de folhas brilhantes.
Encostado à ombreira da porta da cozinha, tentei perceber porque razão a hera da parede do anexo preenche agora o lugar do limoeiro que me ensinou a trepar às árvores. Um sítio tão familiar tornado estranho de um momento para o outro.
Mas não fui o único a estranhar a mudança. Nas horas seguintes, dezenas de pardais atrevidos, num cortejo contínuo, foram chegando para se empoleirarem num dos ramos altos do limoeiro, mas ficavam a pairar por uns instantes, indecisos e confundidos pela falta do poleiro fiel, antes de optarem pelo telhado do anexo ou pelas árvores do vizinho. Como os percebo.
Uma história tão doce e a minha “traquinice” foi numa goiabeira” que a guerra resolveu destruir e outras que não voltei a olhar porque nunca mais voltei!
Hoje revivo a história com as netas, que se penduram numa mini laranjeira (um dia a casa vem abaixo, já lhes disse) e quanto às minhocas, bicho de contas, bichos de pau, aranhas, caracóis, gafanhotos, lagartas verdes de duas miseráveis couves que numa noite limparam tudo e a única folha que sobrou – avó agora pusemos na caixa a folha, tadinhas para não morrerem à fome. Apreeeeeeeee…mas no final da brincadeira e quando as chamo para o banho, lá vão pôr a bicharada toda com a mesma lenga-lenga…pronto, vão lá ter com os vossos pais que devem estar aflitos por não saberem de vocês:)
Obrigado por este momento de leitura