Pedaços isolados de passado
Afonso Loureiro
O abandono da agricultura e das técnicas pré-industriais transformou completamente a paisagem e a cultura. Alguns resquícios sobram aqui e ali, por vezes alimentados por carolice dos que não desejam ver a memória do que foi o seu presente num passado próximo desaparecer sem sequer um suspiro. Os ranchos folclóricos são uma das faces mais visíveis desse apego à cultura popular que foi substituída pela televisão.
As canções com que enquadram danças tradicionais são inspiradas nas que eram cantadas no trabalho dos ranchos (antes de se tornarem folclóricos) com o intuito de marcar o ritmo de trabalho e evitar o esmorecimento. Hoje parecem desligadas do mundo, sem o contexto necessário à sua completa compreensão, tal como um pedaço de cerâmica duma escavação arqueológica é incapaz de explicar toda a cultura que o gerou. Pedaços isolados serão sempre isso.
Na paisagem rural já faltam os animais. Alguns foram substituídos por tractores, mas muitos foram tiveram o mesmo destino das terras – o abandono.
Mesmo assim, aqui e ali, e geralmente nas aldeias onde os mais novos têm idade para esperarem ser bisavós em breve, vão-se encontrando os últimos burros. Quando estes ou os seus donos morreram não serão susbtituídos (nem uns nem outros).
Um dos últimos
Para serem usados como animais de trabalho já começam a ser demasiado velhos. Os burros também devem ter as queixas da idade e sonhar com o tempo em que saltavam de pedra em pedra sem depois ficarem doridos. Mas, acima de tudo, faltam agora os albardeiros que saibam fazer albardas e arreios à medida de cada animal. Foi um dos pedaços de passado que não sobreviveu, logo a começar porque ninguém ganha a vida fazendo uma albarda a cada década.
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