Terra queimada
Afonso Loureiro
A guerra não destruiu apenas estradas, pontes e casas. Destruiu gerações inteiras de angolanos.
Nos planaltos
Durante a última guerra assistiu-se ao êxodo das populações para Luanda, onde não havia combates. As pessoas escolheram um lado, não pelos ideais políticos que defendia, mas por ser aquele onde estavam em segurança. No mato, os exércitos de ambos os lados faziam recrutamentos forçados a cada aldeia onde passavam. Recolhiam todos os rapazes com idade suficiente para lutar, isto é, maiores que a AK47. Se se recusassem, eram mortos sob suspeita de serem simpatizantes da outra facção… tout court. De uma forma ou de outra, obrigaram os homens a abandonar os campos. Os homens tratavam da desmatação e abertura de novas lavras pelo que, sem eles, as mulheres cultivavam o mesmo talhão anos a fio até este estar exausto. As colheitas eram cada vez mais magras e estavam sempre sujeitas a ser confiscadas para abastecer os exércitos. Em caso de recusa ou de suspeita de fornecimento ao inimigo, minava-se as lavras! Esconder os homens e rapazes ou emigrar para a capital eram as duas únicas soluções.
Os netos da guerra
As consequências disto ainda hoje se pagam. Há uma geração de angolanos que cresceu escondido ou que esteve no exército e nunca trabalhou. As angolanas, essas, trabalharam sempre. Trabalharam a dobrar porque os homens em vez de estar nos campos ou combatiam ou se escondiam para não combater. As mulheres trabalhavam porque não tinham escolha. Tal como hoje, a fome da criança às costas é algo que toca no âmago do instinto maternal e obriga a muitos sacrifícios.
Os angolanos cresceram ociosos. As gerações mais velhas não se revêem neles. O sonho dos novos é poder arranjar um emprego como taxista, segurança ou controlador de alguma coisa. Trabalho, só em última escolha. Ao ver uma estrada a precisar de reparação, um angolano não diz que precisa ser reparada. Diz, como já ouvi muitas vezes, “haviam de cá vir os chineses arranjar a estrada”. Este não é o meu país, mas custa-me ouvir esta preguiça colectiva a falar.
À porta de casa já ouvi um mais-velho a ralhar aos dois moços que vivem encostados às paredes do prédio, talvez para evitar que caia. Eles tinham acabado de empurrar o carro a alguém e exigido pagamento. Diziam que tinham fome e que queriam dinheiro para uma sopa. O mais-velho apontava-lhes o dedo, reprovador, e dizia que antigamente se empurrava o carro para ajudar e não para se pedir dinheiro a seguir. Achava estranho estarem sempre com fome. Muita sopa deviam comer… em latas de Cuca. Quem tem fome trabalha!
Na capital não há espaço para lavras. Na capital não há trabalho para todos. Na capital havia milhões de refugiados de uma guerra que ninguém queria. Hoje em dia continua sem haver trabalho para todos.
Fazendo pela vida
A perda de gerações abalou profundamente a coesão social dos povos. A tradição oral, essencial nos dialectos que não têm expressão escrita relevante, perdeu-se. Sem crianças às quais transmitir o conhecimento das gerações passadas, o mundo ficou mais pobre. Já não há ninguém que saiba quando se plantou a árvore na beira do caminho, nem que diga como se faz. Os cemitérios à saída das aldeias foram abandonados com a povoação e as campas dos antepassados passaram a ser campas sem nome.
Os cemitérios de cada aldeia situam-se geralmente à saída da povoação, nas matas à beira da estrada. As campas não ficam escondidas atrás de um muro alto, estão à sombra das árvores que viram crescer os que agora repousam. São mantidas limpas e arranjadas.
Antepassados
Nas aldeias abandonadas, os cemitérios foram invadidos pelo capim e pelas termiteiras. Os nomes nas campas desapareceram. Por vezes, apenas uma cruz de madeira tosca identifica o local.
Sem nome
A maioria dos homens prefere partir para as cidades do litoral, onde formam uma nova família, muitas vezes deixando mulher e filhos para trás. No campo vêem-se poucos. Ainda menos nas lavras. Até mesmo profissões mais exigentes fisicamente, habitualmente desempenhadas por homens, são agora ocupadas por mulheres, como o fabrico de blocos de adobe.
Mãe e filho
Também é certo que a dependência do petróleo já se faz notar até mesmo no interior. A necessidade de alimentar os táxis, os geradores e os candeeiros obriga a que se tenha de ter dinheiro para comprar o combustível. Os lucros provenientes da lavra não são suficientes. Toda a gente produz o mesmo e ninguém quer comprar. Só na cidade se vende alguma coisa e a baixo preço. Ir para a cidade implica uma caminhada de vários quilómetros. Podem ser encurtados com uma viagem de táxi, que custa cerca de 250 Kz por cada 20 km.
Taxista orgulhoso
Tal como na capital, os taxistas nunca teriam dinheiro para comprar uma carrinha ou uma mota. Trabalham para o dono do veículo. Têm de entregar uma determinada quantia ao fim do dia. Tudo quanto fizerem a mais é deles. Enquanto isto, as mulheres continuam na lavra, a sustentar os estômagos da família.
O aparecimento de dinheiro na mão dos agricultores faz nascer negócios um pouco por toda a parte. Os candongueiros da gasolina surgem atrás de cada árvore nas zonas mais remotas. Ficar sem gasolina a 40 km da povoação mais próxima pode ser dramático, mas, pelo preço certo, consegue-se prosseguir viagem.
125%
As tabernas e cantinas passam a vender cerveja como nunca e grande parte do dinheiro ganho nem chega a casa.
Havemos de voltar
Mas nem todos os rapazes conduzem táxis ou ficam sentados à espera do dia seguinte. Há alguns que trabalham no campo com a família. São mais a excepção que a regra, mas não seria justo ignorá-los.
Na lavra de batata-doce com a avó e a irmã
Desempenham as funções que lhes competiam há muitos anos atrás. Nos trabalhos que exigem mais força já substituem as mulheres. Lavrar os campos com um arado e uma junta de bois é um bom exemplo. Para além disso, não é fácil fazê-lo com o filho às costas…
Sob o olhar do mais-velho, o rapaz vai conduzindo os bois
As pontes que foram caindo com a guerra ou com a falta de manutenção são repostas à custa de braços e eucaliptos plantados ainda no tempo do colono, para abastecer o caminho-de-ferro de Benguela. Aquelas árvores que “não se sabe se são plantadas ou se nascem sozinhas, porque nunca ninguém viu uma nascer”, como já ouvi dizer.
Caminho para o futuro
O futuro de Angola está nestes rapazes e, sobretudo, raparigas que agora começam a sua vida. A escola é uma oficina de virtudes, como está escrito nas paredes de todas as escolas primárias. É nela que vão aprender a construir uma vida melhor. É com eles que Angola vai despertar do marasmo trazido por quarenta anos de guerra.
O nascer de um novo dia
Texto sensacional, inspirador e de extrema precisão.
Abraço
Que belo nascer do sol!
Excelente. O Afonso consegue expressar a opinião de muita gente e uma realidade inquestionável, com um texto extremamente correcto e ainda complementa com fotos bem enquadradas. Fabuloso!
Continua a ser um dos meus blogs de eleição.