Aerograma

Isento de Porte e de Sobretaxa Aérea

18  08 2008

Feiticeiro Sinaleiro

Como o trânsito laundanse é caótico e o desespero causado por filas de quilómetros leva alguns condutores à loucura, é necessário arranjar maneira de manter as coisas sob controlo. Ora são os cruzamentos desnivelados, ora são as avenidas com um separador central em betão e rotundas em cada ponta. Mesmo assim, há sítios onde só mesmo com a presença de alguém que discipline o trânsito selvagem é as coisas vão funcionando.

Os polícias de trânsito distinguem-se bem. Andam com camisas de manga curta e calças bem vincadas. No chapéu usam a capa de chuva, feita de plástico branco. No tempo do cacimbo protege o chapéu do pó que tudo cobre. Todos os polícias a usam, de tal forma que já parece fazer parte da farda habitual. Por cima da camisa usam um colete fluorescente laranja. Para rematar, um par de luvas imaculadamente brancas. Imaculadamente brancas é uma força de expressão. Há polícias com luvas bem tratadas, mas outros têm-nas bem encardidas ou tão puídas que os dedos estão gastos. Mas continuam a ofuscar. A farda é azul, mas o que retemos na memória são as luvas brancas e o colete laranja.

 De manhã vão regulando o trânsito nas principais artérias, mas, acima de tudo evitam que os condutores vão entupindo os cruzamentos só porque querem ganhar meia-dúzia de metros.

Há condutores que, mesmo à frente da polícia, executam as manobras mais estranhas e ilegais. Depois reclamam quando lhes pedem os documentos na esquina seguinte. Nestas alturas são extremamente formais.

Na sua maioria, desempenham a sua função sem grande alarido. Muitos não usam os sinais regulamentares, mas fazem-se perceber. Outros inventam uns gestos novos que nos deixam na dúvida se devemos avançar, parar ou recuar.

O apito é um acessório fundamental para reforçar as ordens e lá vai sendo usado. Para além dos habituais apitos de metal, há polícias que usam apitos de plástico coloridos. Tal como os gestos, os apitos também não seguem as regras a que estamos acostumados. Podem servir para reforçar uma ordem, para avisar ou apenas para criar um fundo musical para a coreografia que executam.

Há sempre uns profissionais que se distinguem. Costuma estar um polícia sinaleiro no cruzamento antes do largo da Maianga que só consigo descrever como o feiticeiro sinaleiro.

A maneira como coreografa as ordens e como executa gestos que deve ter treinado ao espelho é impressionante.

Os seus braços movem-se ora depressa, ora devagar e entre cada ordem executa uma série de movimentos novos que preenchem o espaço à sua volta.

Quando manda avançar os carros da sua direita faz um gesto rápido com a mão, que pára, a vibrar, sobre o chapéu. A mão esquerda oferece o cruzamento para quem avança. Enquanto se inclina para um lado, levanta a anca do lado oposto e quase mergulha atrás da mão que vai buscar os carros.

Até mandar avançar os carros da rua seguinte, vai criando uma dança com os braços, em que tenta fundir uma arte marcial há muito esquecida com a imitação de uma garça. E os condutores mais lentos são auxiliados pela manobra esforçada de um cabo invisível que os puxa.

O apito canta, geme e suspira, numa sucessão de toques e chamamentos. Acompanha o movimento das mãos com uma sincronia perfeita. É incidente quando o gesto assim o exige, mas vai perdendo o fôlego à medida que o feiticeiro atinge a pose mágica e arregala os olhos, deixando a mão a vibrar. A seguir estica um braço violentamente e encara uma nova artéria. O apito grita e os condutores, mesmerizados, avançam ordeiramente.

Há outras alturas em que se transforma num toureiro, esquivando-se com elegância do animal e atiçando-o para mais uma investida. Só faltam os Olé! da multidão.

Na primeira vez que o vi, imaginei-o vestido com uma pele de chita a executar exactamente os mesmos movimentos mágicos em torno de algum doente que tinha ido visitar o feiticeiro da aldeia. Achei que era uma ideia genial, misturar a civilização ocidental com a africana. Junta a postura rígida e metódica do polícia com a autoridade moral e conhecimento das forças anímicas que regem todo este continente misterioso.

 O certo é que a magia funciona. Os candongueiros tornam-se condutores quase exemplares e os cruzamentos deixam de ser os nós górdios habituais para se assemelharem a um verdadeiro cruzamento. Toda a gente se esquece da pressa que tem e apenas presta atenção ao ritual do feiticeiro.

Como contado não tem metade da piada, brindo-vos com este feiticeiro que já conseguiu chegar ao Youtube…

Acerca do autor

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Nascido no século passado com alma de engenheiro, partiu para Angola, de onde envia pequenos aerogramas.

2 respostas a “Feiticeiro Sinaleiro”

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  1. Fantástico! Fartei-me de rir com o sinaleiro-espectáculo! Ih1Ih! O primeiro video não está visível mas os outros dois são suficientemente elucidativos do post.
    Beijinho para si e para os seus compaheiros de casa.

    Maria

  2. Qual lago dos cisnes, qual quebra nozes… isto sim é um bom espectáculo… aquele rodopiar, a graciosidade dos movimentos, que grande artista.

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