Aerograma

Isento de Porte e de Sobretaxa Aérea

24  11 2011

Ferramentas novas

Julgo que a melhor lição que retenho do meu pai tenha sido a de saber quando se deve construir uma ferramenta para uma ocasião especial.

No nosso último grande projecto de carpintaria, uma porta, houve a necessidade de fazer um pequeno canal na borracha – a peça que proteje da chuva a parte de baixo da porta. Para a dimensão da peça não se justificava comprar uma goiva ou uma tupia, pelo que construímos uma pequena plaina com um ferro improvisado com um pedaço de verguinha temperada a maçarico. A borracha ficou perfeita.

Recentemente, precisei de comprar uma tupia. Na verdade precisava de duas, uma de bancada e outra de mergulho. Como o orçamento só esticava até à mais barata, optei pela de mergulho, mais versátil. Com algumas adaptações ao método de trabalho, consegui acabar o projecto só com esta.

Mas agora tenho entre mãos um outro projecto, um pouco mais ambicioso, no qual a tupia de mergulho seria demasiado complicada de usar. Seriam demasiadas guias e grampos para a conseguir utilizar decentemente. Precisava de uma tupia de bancada, mas isso estava claramente fora de qualquer orçamento.

A única solução à vista era imbuir-me do espírito de construtor de ferramentas, meter mãos à obra e transformar a tupia que já tenho numa de bancada. De preferência de borla. Julgo que consegui.

Mesa de tupia
Mesa da tupia em posição de regulação de profundidade

Em cerca de meio dia construí uma pequena mesa para apoiar sobre a bancada de trabalho. É toda feita de sobras. As pernas e a guarda da fresa são sobras de madeira de outros projectos. O tampo é uma porta de armário estragada e os lados são feitos com a madeira de uma palete deitada fora por um vizinho cá do bairro. O interruptor é estanque porque era o que estava à mão e a tomada era a que estava na bancada de trabalho. Umas dúzias de parafusos de tamanhos variados seguram as peças e a tupia e completam a obra. Se um dia destes estiver para aí virado, ainda lhe dou uma lixadela e duas demão de verniz.

Faltam-lhe alguns requintes das mesas compradas, como uma regulação da profundidade de corte sem ter de se voltar o tampo, mas isso virá com o tempo. Para já, tem as funcionalidades necessárias para continuar o outro projecto e, ainda por cima, posso dizer mal de quem a fez sem sentir qualquer peso na consciência.


23  11 2011

Selos de molduras

As molduras são hoje uma espécie de pronto-a-vestir para fotografias que se compram feitas em qualquer supermercado. Os tamanhos padronizados destas molduras servem para as coisas banais, mas causam grandes dores de cabeça a quem não tem a fotografia ou pintura exactamente do formato regulamentar. Ainda há quem faça molduras por medida, claro, mas raramente sabemos ao certo onde.

Há muitos, muitos anos, as molduras eram todas feitas por medida. E à mão. Casas especializadas na arte de emoldurar apareciam quase sempre perto de fotógrafos, mas foram fechando uns e outros à medida que molduras de tamanhos normalizados feitas em massa inundavam o mercado e a película era abandonada pelos fotógrafos.

Cada casa, como hoje ainda acontece, colava nas costas da moldura uma identificação da loja. Quando se retira um quadro da parede, há sempre a curiosidade mórbida de espreitar-lhe para as costas. Enquanto o curioso aprecia o acabamento da moldura, aproveita-se para publicitar os serviços.

A Moldura Moderna
A Moldura Moderna

Infelizmente, as melhores molduras são as que duram mais. Quando, finalmente, alguém as vira para lhes espreitar as costas, quase sempre se depara com o nome de uma casa que fechou há décadas.

Casa das Molduras
Telefone de cinco dígitos

Algumas estão tão desactualizadas, com números de telefone curtíssimos e endereços referidos a ruas que mudaram de nome, que nem sequer se lhes pode cheirar o rasto. Fizeram em tempos uma boa moldura e depois… desapareceram.

A etiqueta de moldura que mostro, da Casa das Molduras, é seguramente anterior a 28 de Maio 1956, altura em que a Rua Alves Correia, assim chamada a partir de 1913 para homenagear um impulsionador do regime republicano, se voltou a chamar Rua de São José, o seu nome original. O número 207 já não existe sequer.


22  11 2011

Amigas das porteiras

Hoje já não há porteiras. Esse símbolo da vida urbana e da classe média de há algumas décadas é agora mordomia reservada aos condomínios fechados ou apartamentos de luxo. Os outros contentam-se trincos eléctricos e a pressionar os botões do vídeo-porteiros, esse sucedâneo que, por muito evoluído que seja, não disfarça a falta de alma.

Aspidistra
Amiga das porteiras

Com o fim das porteiras, deixou também de se ver nas escadas e patamares de cada prédio a tradicional colecção de vasos de Aspidistras. Esta era a planta preferida das porteiras. Dá-se perfeitamente com pouca luz e só precisa de ser regada de vez em quando – é a ideal para escadas mal iluminadas e porteiras com dores nas costas. Com pouco trabalho fazia parecer muito cuidado em manter impecável o aspecto dos vasos. Era uma relação de tal forma comum que a própria planta ganhou o cognome de Amiga das porteiras.


21  11 2011

Santo António de PVC

Temos um vizinho que tem um carro merdoso todo artilhado – o famoso xuning. Julga que anda mais por causa dos plásticos a imitar cromados que comprou no supermercado ou pelos tapetes vermelhos que dizem «Racing». Pelo menos ainda não teve dinheiro para comprar um escape barulhento. Mas sempre que o vejo de volta do carro pergunto-me quando virá o Santo António de PVC. Para explicar o que é, nada como uma curta história que começa na margem mais distante do Atlântico e me foi contada em paragens igualmente longínquas.

Consta que na época em que o Ayrton Senna começou a achar interessante ver corridas de automóveis, já os brasileiros eram doidos por isso e tinham um campeonato de turismo particularmente renhido.

Como não havia tantos patrocínios ou pilotos profissionais como há hoje, quase todos corriam com os carros do dia-a-dia ou com modificações mínimas. Mesmo assim, as preparações resumiam-se ao motor ou outros componentes que pudessem fazer o carro andar mais depressa ou comportar-se melhor e não sobrava dinheiro para a segurança. Os acidentes a alta velocidade sucediam-se e um capotanço significava uma morte quase certa do piloto.

Avisadamente, as organizações começaram a exigir que os carros fossem equipados com barras de segurança que impedissem o esmagamento do piloto. Sem elas, não podiam correr. Curiosamente, do outro lado do Atlântico costumam chamar a essa gaiola Santo António, talvez por salvar vidas.

Os pilotos que já estavam apertados de dinheiro não podiam comportar a despesa de fabricar ou comprar uma gaiola de segurança, mas nem por isso queriam desistir de competir. Era apenas questão de conseguir contornar o regulamento com o mínimo de investimento. Essa solução apareceu mais depressa do que se julgava.

Em breve, um mais habilidoso resolveu comprar tubos de PVC com um diâmetro próximo do dos tubos de aço usados nas gaiolas dos profissionais e, com alguma perícia, umas horas de paciência e um pouco de cola de PVC, montou uma estrutura com a mesma forma dentro do carro. Parecia mesmo um Santo António. Só a cor cinzenta e as ligações destoavam, mas nada que um pouco betume e alguma tinta preta não resolvessem.

A inovação foi passando de boca em boca e grande parte dos pilotos que estavam afastados das corridas por falta do Santo António regulamentar começaram a aparecer. Os inspectores olhavam para dentro do carro e viam uma estrutura de aspecto sólido montada nos sítios devidos. Não perdiam tempo a aprovar o carro para a corrida.

Todos estavam contentes, os pilotos especialmente, porque com um Santo António de plástico tinham a vantagem do peso reduzido em relação aos profissionais, com estruturas mais pesadas. As organizações sorriam porque tinham agora todos os pilotos a correm com mais segurança e um campeonato mais disputado.

A felicidade durou até ao primeiro acidente e se descobriu que os novíssimos Santos Antónios se partiam como se feitos de plástico. As inspecções aos equipamentos de segurança passaram a incluir um pouco mais do que um relance.


20  11 2011

E que se plantem flores

Assisti recentemente a uma interessante reportagem da Al-Jazeera acerca da Somália, mais concretamente sobre o papel do novo presidente da Câmara de Mogadíscio e do seu esforço para reconstruir a cidade e lutar contra a insegurança.

Centra-se na preparação de um festival de música e folclore para que as pessoas sintam que a normalidade está a voltar. Reservou às mulheres um importante papel, ao considerá-las o garante de uma paz duradoura.

Exactamente porque a normalidade é algo que não interessa às facções armadas que controlam grande parte da cidade, houve um ataque ao festival que resultou em vários mortos e feridos. No entanto, nas horas que antecederam o ataque, os participantes sentiram-se como nos tempos de Siad Barre, quando as coisas não eram perfeitas, mas funcionavam e não morria gente nas ruas desta forma.

Flores
Flores

De toda a reportagem, retenho em especial o comentário de uma mulher acerca da instalação de iluminação pública numa avenida: «Isto não pode parar por aqui. É preciso levar a luz ao resto da cidade. E que se plantem flores, para que tudo volte ao normal.»

É uma poetisa.


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