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Isento de Porte e de Sobretaxa Aérea

29  11 2011

Pratos tradicionais

Algo de muito esquisito se passa com a gastronomia portuguesa deste novo século. Parece que se ressuscitou o bacalhau, que era da Terra Nova e dos pobres e agora vem da Noruega e é para gente fina.

Todo o cozinheiro televisivo acha ter direito a uma variante de receita de bacalhau, de preferência com cogumelos da Alta Toscânia envelhecidos em cascos de carvalho e pequenas porções de molho de ostras, servido num prato gigante com um ramo de salsa. Rematam com uma declaração de que assim defendem a gastronomia tradicional.

Entretanto, no talho do bairro, porque há sempre o reverso da medalha e a televisão, por muito que tente, não é o espelho da civilização, os próprios talhantes nos vão avisando que muito do que era tradicional está simplesmente a ser substituído pelo bife.

Parece que do porco já não se come tudo. A salada de orelha causa arrepios a quem não sabe como vão parar os frangos à prateleira do supermercado e as iscas, as fabulosas iscas de cebolada que se podiam comer em qualquer tasca de qualidade, ficam a rebolar no expositor. As iscas metem-me nojo, mãezinha! Acabam oferecidas ao canil.

Iscas
Iscas com elas na panela ao lado

Já não me recordo da última vez que vi um restaurante a servir as famosas «Iscas com elas», nem peixinhos da horta ou qualquer outra iguaria que caiu em desfavor social. Se bem me lembro, não gostava lá muito de peixinhos da horta quando era pequeno, mas agora fazem-me falta.


28  11 2011

Cinema Caleidoscópio

Sempre conheci o edifício Caleidoscópio como livraria. Mais umas pequenas lojas com poucos clientes preenchiam o espaço, mas era a livraria que me enchia as recordações.

O original painel de azulejos em relevo perto da porta sempre me pareceu um pouco deslocado para decorar um centro comercial tão modesto. Só depois de descobrir que tinha sido um cinema que viu os seus dias áureos em pleno PREC.

Estava justificado o painel. Era da época em que uma ida ao cinema ainda era um evento cultural, ao invés de uma sessão de degustação auditiva das pipocas do vizinho.

mural
Painel do Cinema Caleidoscópio

Por alguma força miraculosa, sobreviveu às bexigas apertadas dos clientes da discoteca ao lado e escapou incólume à brigada das tintas e rabiscos que assola os espaços públicos.

Sempre que vejo estas obras de arte incluídas na arquitectura não deixo de pensar no que terá acontecido nas últimas décadas. Os arquitectos só se preocupam com as grandes linhas, com a maquete apresentável, com os materiais escolhidos no catálogo. Para onde foi o cunho pessoal, a obra de arte encomendada para a fachada?


27  11 2011

Concerto inesperado

Morar perto do jardim dos candeeiros não tem apenas a vantagem de se poder contar a história de duas décadas de promessas eleitorais. Como se tornou o verdadeiro centro de lazer da cidade, acabamos por ter direito a algumas surpresas mesma ao sair da porta.

Às vezes são as feiras de artesanato, e outras os concertos de música popular que terminam a horas civilizadas porque os artistas também dormem.

Mademoiselle Brel
Mademoiselle Brel em actuação

Mas as melhores surpresas são os pequenos concertos com direito a cadeiras na plateia e música menos barulhenta. Foi a primeira edição do Queluz Jazz, de há uns meses.

Mas agora, com as noites mais frias, só temos direito a assistir ao espectáculo das folhas dos choupos a ser levadas pelo vento.


26  11 2011

Xicoronhos, Macópios e Cabeças de Pungo

Para muitos, Lubango e Namibe são nomes novos. Os que conheceram Sá da Bandeira e Moçamedes sabem que os novos nomes apenas ocupam o lugar das cidades que recordam. Às vezes temos a sorte do nosso lado e partilham uma história cheia daqueles pormenores que ajudam a perceber melhor o espírito de quem viveu em África. Em muitos aspectos, estas recordações espontâneas são melhores do que as trazidas pelas fotografias da época, que evocam os lugares e pouco mais.

Em 1971, a Miss Portugal era oriunda de Moçamedes, reforçando a ideia da nação multicontinental apregoada pelo regime. Maria Celmira, por todos conhecida como Riquita, fazia parte dos muitos colonos da que se dizia ser a terra com as mulheres mais bonitas de Angola. Riquita foi apenas a confirmação do que diziam os que faziam de propósito os 180 km que separavam Sá da Bandeira de Moçamedes só para lavar as vistas.

Sá da Bandeira 433 km
Terra de Macópios

Os habitantes europeus destas duas povoações, próximas em distância, mas infinitamente longínquas em termos de clima e paisagem, depressa inventaram alcunhas mais ou menos pejorativas para os vizinhos. Os de Moçamedes, talvez com inveja do clima mais ameno dos planaltos da Huíla chamavam Macópios aos de Sá da Bandeira, nome dos coelhos que abundavam naquelas serras altas. Por vezes chamavam-lhes mesmo xicoronhos, o nome que os zombos tinham dado aos colonos de Sá da Bandeira, Humpata e demais terras da Huíla onde havia fazendeiros. Xicoronho é a adaptação à língua local da palavra colonos, com o prefixo xi, que significa terra.

Não querendo ficar atrás, os de Sá da Bandeira tratavam os de Moçamedes por Cabeças de Pungo ou Cabeças de Peixe, fazendo menção ao que achavam ser a única actividade económica daquela terra rodeada de deserto – o porto de pesca.

Ao que parece, ninguém encarava estas alcunhas com maldade. Xicoronho ou tripeiro, cabeça de pungo ou alfacinha, macópio ou sadino, cada um tem é orgulho na sua terra.


25  11 2011

Clavículas de Salomão, Omoplata do Tshombé

Começa a fazer parte da paisagem urbana ver distribuir à saída do metro pequenos papelinhos rectangulares com texto denso impresso a uma só cor. São os panfletos dos feiticeiros africanos, que na Europa dão pelo nome de astrólogos. São Doutores, Professores, Videntes e Santos com nomes típicos da África Ocidental

A fórmula é quase sempre a mesma. O nome escrito do feiticeiro em letras garrafais encabeça o panfleto. Seguem-se-lhe as categorias profissionais e, mais abaixo, um breve currículo que atesta os poderes do mago. Curiosamente, é neste currículo que se pode tomar o pulso às preocupações correntes da maioria das pessoas. Os feiticeiros são rapidíssimos a reagir às necessidades da clientela. É fácil perceber quando uma nova crise entrou em força se os feiticeiros anunciam protecção de emprego ou curam a falta de dinheiro.

Feiticeiro Mamadu
Mamadu, o do Dom "Herditário"

Também anunciam sempre que só recebem pagamento após resultados a contento do cliente. Convenientemente, esquecem-se de referir que, apesar de só cobrarem pelos resultados, as matérias-primas para os "tratamentos" têm de ser pagas à parte. O cliente vai pagando os tijolos e só paga o trabalho de construir a casa quando esta tiver telhado. Também não dizem que estes produtos especiais têm um preço quase convidativo, nem muito caro que assuste, nem muito barato que faça desconfiar da qualidade. Mas são precisos muitos e durante meses a fio. Um cliente é uma boa renda.

Alguns, mais informados, afirmam ser especialistas em técnicas especiais, como seja a mestria das Clavículas de Salomão, uma espécie de Tarot que, diz a lenda, foi escrito pelo próprio Rei Salomão enquanto pensava na Rainha do Sabá.

O certo é que nestas coisas não se pode dar parte de fraco e assim que um feiticeiro disse saber usar as Clavículas de Salomão, apareceu logo outro a garantir que, para além destas, usava também a Omoplata do Tshombé. Estes panfletos da Omoplata do Tshombé já não aparecem há muitos anos, talvez porque o próprio Tshombé caiu no esquecimento pouco depois de morrer.


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