Aerograma

Isento de Porte e de Sobretaxa Aérea

28  12 2011

Verbos ser e estar

Uma característica que separa o Português de muitas outras línguas europeias é a existência de dois verbos distintos para ser e estar. Em Francês e Inglês, por exemplo, être e to be são paus para toda a obra e, como ferramentas grosseiras que são, tornam-se incapazes de traduzir as subtilezas dos correspondentes verbos portugueses.

Mas não se pense que lá por termos verbos distintos para ser e estar os segregamos de tal modo que não se falam. Como em tantas outras coisas, somos um bocado promíscuos neste assunto e usamos um ou outro consoante queremos dar ênfase a determinados aspectos.

Belém
Ser Belém e estar em Belém

Não há forma concisa nem minimamente precisa de traduzir expressões como «Estou doente»,«Sou doente», «Ando doente» ou «Tenho andado doente» sem cair num singelo «Je suis malade» que nada acrescenta. Os portugueses sabem instantaneamente catalogar todas as gradações entre as várias frases.

E haverá maneira mais concisa de uma viúva anunciar o estado civil no centro de saúde do que um modesto «Sou sozinha»?


17  12 2011

Periquitos-de-colar

Há cerca de uma vintena de anos, avistámos um bonito pássaro de aspecto exótico a sobrevoar o quintal. Era um grande periquito verde e julgámos ter fugido de alguma gaiola. Pássaros daqueles não são espécie nativa destas paragens.

Por outro lado, os bicos-de-lacre também não o são e adaptaram-se maravilhosamente ao clima deste nosso cantinho vindos lá das áfricas. Durante os anos seguintes, os avistamentos de periquitos verdes aumentaram na zona. Comprovadamente, o periquito desgarrado era assilvestrado ou, mais provavelmente, completamente selvagem.

Periquitos-de-colar
Periquitos-de-colar

Numa visita aos jardins do Palácio de Queluz, descobri que nos talhões mais esquecidos, onde as ruínas das estufas se escondem pelo meio de vinha virgem e sebes de buxo desgrenhadas, um velho aeromotor enferrujado serve de ninho a uma colónia destes grandes periquitos verdes.

Descobri que são periquitos-de-colar selvagens que se adaptaram ao nosso clima, tal como muitas outras espécies de pássaros exóticas, havendo várias colónias estáveis no litoral centro. Algumas das quais no centro das cidades. Como curiosidade, já são conhecidos como aves de gaiola desde a Antiguidade.

Periquitos-de-colar
Periquitos-de-colar

É também curioso que procurem abrigo quase sempre nos grandes eucaliptos, outra espécie exótica. Os periquitos-de-colar não são originários da Austrália como algumas outras espécies de periquitos. São endémicos das florestas tropicais africanas e indianas. Mas há que admitir, as longas penas da cauda fazem um excelente conjunto com as folhas do eucalipto.


15  12 2011

Juventude suburbana

Andando todos os dias de comboio, dos subúrbios para Lisboa e vice-versa, tenho a oportunidade de observar uma boa fatia da população urbana. A que mais me fascina é a que diz respeito aos adolescentes de ar revoltado que acham que a rebeldia se mede em metros de paredes borradas com latas de tinta em spray. Ultimamente descobriram também que uma determinada dose de brincos e alfinetes parcimoniosamente espalhados pela cara é demonstrativa de individualidade extrema. É pena que todos optem por fazer o mesmo.

Uma faceta característica de parte da juventude suburbana é facilmente identificada nos pequenos rebanhos de adolescente imberbes que se contorcem para dar dois passos à conta de andarem com o gancho das calças abaixo dos joelhos. Sei que as modas valem mais do que o conforto, mas tropeçar nas calças porque se tem de mostrar as cuecas entra na categoria de parvo a roçar a imbecilidade. Bem sei que nos meus tempos de adolescente, havia muito boa rapariga a abotoar as calças de ganga sobre o casaco de penas só para que se visse a etiqueta. E que antes disso houve os chumaços nos ombros e as calças à boca-de-sino. Que me lembre, com qualquer destas indumentárias era possível subir e descer escadas e até mesmo dar dois passos sem imitar um pato.

Outra interessante faceta é a necessidade de alguns elementos se fazerem acompanhar por uma banda sonora roufenha permanente baloiçada na ponta dos braços e disfarçada de telefone. Tal como as cuecas à mostra e as calças pelos joelhos, dar má música ao mundo roufenha e em altos berros está mais na moda do que a ouvir em boas condições com um simples par de auscultadores. Mais curioso ainda é que baloiçam o telefone de um lado para o outro para que todos oiçam (ou incomode todos), mas depois não se ouvem uns aos outros quando conversam, razão pela qual têm de falar mais alto.

Querendo descrever um destes exemplares, se disser que um surdo foi atropelado e perdeu parte do uso das pernas não andarei muito longe da verdade.


12 2011

Marcenaria canina

Os cães são uns excelentes companheiros para aqueles projectos mais demorados e aborrecidos. Uma tarde inteira a afinar as samblagens de uma peça é um desafio de paciência e poucos se voluntariam para fazer companhia a alguém que verifica os encaixes a cada duas voltas de formão. O progresso é lento e tem um efeito anestesiante. Excepto para o cão, que não sai da oficina enquanto a peça não é terminada.

Primeiro é preciso correr com ele duas ou três vezes de debaixo dos pés. A pique canina tem um fascínio especial por se deitar literalmente aos pés das pessoas. Depois de convencido, com uns empurrões e resmungos, acaba por se enroscar ao lado da bancada ou mais perto da porta. Não deixa muito espaço, mas fica fora da zona de pisadelas.

E depois finge que adormece. De olhos fechados e uma orelha espetada, espera que lhe perguntemos a opinião, porque trabalhar sozinho desmoraliza. «Cão, achas que está direito? Pois, bem me parecia.» Para além da orelha se virar na nossa direcção, nada mais indica vigilância, mas a companhia é bem vinda. E uma festa na cabeça de vez em quando também, acrescenta o cão.

As horas passam-se com uma certa indolência. Serrotes e formões não são muito excitantes e o companheiro canino limita-se apenas a anuir em silêncio. Por outro lado, tudo o que faz serradura ou tem movimentos mais vigorosos é sinal de que aquela posição é pouco vantajosa. Uma serra de arco indica claramente que o lombo tem de ficar perfeitamente alinhado com o vai-e-vem da lâmina. Por muito que mexamos a bancada ou a peça para que a serra aponte para outro sítio, o cão de ideias fixas limita-se a levantar-se e a deitar-se novamente debaixo da serra.

Marcenaria
Antes do acabamento

O mesmo acontece com a serra circular. As aparas são cuspidas num jacto forte para a direita. Quem não souber onde para o cão, segue o arco que a serradura descreve e lá o encontra, sentado e a encher-se de lixo com um ar estupidamente feliz.

No fim do dia, um monte de serradura clara sacode-se e lá do meio surge um cão. Quem diria.


30  11 2011

Saída de campo noutra era geológica

Muitas das memórias partilhadas pela grande maioria dos colegas de curso incluem as famosas saídas de campo de geologia, pouco antes do Natal do primeiro semestre de faculdade. No meu caso, já foi no século passado.

De vez em quando lá alguém se lembra de falar no Tony sempre de martelo na mão, pronto a recolher mais uma amostra geológica. Alguns colegas encheram os bolsos de pedras e pedrinhas que depois despejaram em qualquer lugar por se aperceberem do disparate que é colher amostras ao acaso e sem interesse em guardar.

Também recolhi algumas, que me lembrava de ter identificado, mas depois perdi-lhes o rasto. No quintal vão-se amontoando no fundo dos canteiros pequenas colecções de rochas curiosas, mas as desse dia estavam em parte incerta.

Amostras geológicas
Basaltos com disjunção prismática, amostras de mafraíto, mármore e outros calhaus variados

Encontrei-as nas arrumações, pois claro, guardadas na caixa que agora me lembro perfeitamente ter preparado. As pequenas marcas de tinta branca com a numeração a negro estavam em perfeito estado e algumas sabia ainda onde tinham sido recolhidas e, muito mais importante, porquê.

A legenda, essa, é que está em parte incerta. Devo ter de ficado de a passar a limpo e acabei por a perder. Está na hora de arrumar melhor os cristais de quartzo e pequenos geodos num dos canteiros e enfiar lá mais estas.


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