A Memória, Jean Michel Jarre e Descartes – que grande salganhada!
Afonso Loureiro
A memória humana é algo de muito complexo. Funciona de maneiras estranhas e imprevisíveis. Lembramo-nos das coisas mais inusitadas e esquecemo-nos das que julgávamos importantes. Não o deviam ser assim tanto, porque as acabamos por esquecer.
Há quem tenha jeito para decorar datas e números, quer seja por mnemónicas que exigem treino, quer seja por aptidão natural. Outros decoram milhares de factos, muito provavelmente inúteis.
Fui abençoado com uma memória cheia de personalidade. Que se lembra só do que quer e não do que eu desejo. E muitas vezes dou por mim a agradecer o facto de ser esquecido. É certo que por vezes me surpreende e me relembra coisas que já dava por perdidas.
O que despoleta certas memórias são sempre as coisas inesperadas, os estímulos dos sentidos menos usados conscientemente. Durante todo o dia usamos os olhos para nos enquadramos no mundo, a todo o momento lemos letras e situações. Poder-se-ia quase dizer que os olhos estão tão saturados de informação que a filtram de modo a que tenhamos apenas a necessária para funcionar. Já o tacto, a audição e o olfacto passam despercebidos grande parte do tempo. Ouvimos e sentimos, mas não lhes prestamos atenção.
Mas há determinadas alturas em que um pequeno estímulo num destes sentidos desprezados desencadeia uma reacção violenta na memória que habita cá dentro, a tal com vida própria. Pedaços da nossa vivência são despejados violentamente dentro de nós, fazendo-nos, por um momento, perder a noção da realidade que nos rodeia e viver intensamente aquela explosão de emoções.
O cheiro dos sabonetes Feno de Portugal transporta-me, de imediato, à minha infância mais recôndita, para a época em que começava a ter consciência de mim e do assombroso que era o mundo, das descobertas e do deslumbramento com as coisas mais pequenas.
A mercearia do Lobito, que me trouxe de volta o Depósito do Sabugal
Em Angola os cheiros são diferentes. São exóticos e desconhecidos. Para já, ainda os estou a descobrir, mas tenho a certeza de que daqui a alguns anos serei despertado para um qualquer episódio em África graças a um qualquer aroma com que me cruze.
Qual o sabor de uma palavra? Não sei bem, mas um paladar traz-nos de volta o sabor de uma determinada palavra sem que o sonhemos. Percebi que as palavras também vêm em vários paladares, à medida que fui descobrindo o que despertava a memória. Mesmo quem ainda não se apercebeu disto, dá por si a fechar os olhos e a rebuscar na memória qualquer coisa longínqua, quando prova algo que lhe é familiar de há muito tempo. É a tentativa de resumir todo o paladar numa única palavra que, provavelmente, não fará sentido para mais ninguém. E depois, basta pensar nessa palavra para senti-la desfazer-se na boca…
O mesmo se passa com o tacto. Por vezes basta uma textura na ponta dos dedos para entrarmos naquela fabulosa máquina do tempo que é a memória e rever todos os pormenores de uma situação tão antiga que já nem parece ter sido vivida por nós.
Por vezes dou por mim a pensar se aquilo que somos é, na verdade, real. Somos moldados pelo que nos rodeia e, em última instância, essas situações só nos afectam hoje porque nos recordamos delas. E que acontece quando tentamos imaginar se tudo isso não passa de um exercício criativo da nossa memória? Será que somos o que julgamos ser? E se todas as nossas memórias forem apenas fantasia? E se tudo não passar de um sonho? Com um pequeno estímulo recordamos o que já tomávamos como definitivamente perdido e que, por isso, pode nunca ter existido. Temos períodos na nossa vida em que somos incapazes de saber ao certo o que aconteceu, mas a dada altura, recordamos com absoluto rigor um qualquer episódio. Este problema afectou Descartes, que resolveu a questão com a elegância de três palavras apenas. Mas a questão persistia em mim e, durante anos, tentei encontrar uma falha no seu raciocínio.
Ainda mal andava quando parti a cabeça nesta mesma rua, mas em Portugal
Parti do princípio que tudo era um sonho, que dormia sem parar e todo o Mundo que conhecia não passava de uma construção minha, tal como os sonhos complicados que por vezes temos. E depois interroguei-me se seria possível sonhar que sonhava. Ou sonhar que sonhava um sonho. Acabei por dar a mão à palmatória e assumir que, de duas, a explicação mais simples para o mesmo facto é, habitualmente, a verdadeira. Sem estímulos do mundo que nos rodeia seríamos incapazes de sonhar, por falta de matéria de sustento do sonho. Penso, logo existo parece-me uma explicação mais que satisfatória.
No entanto, isto levou-me a outro problema. Será que o tempo existe? A nossa sensação de tempo deve-se à capacidade que temos de recordar o que já foi e de prever o que será com base na nossa memória. Mas isto pressupõe que a memória seja verdadeira. Não sou o mesmo de há instantes, nem serei quem sou daqui a pouco. Talvez me recorde de como fui, mas isso é mais uma experiência que me molda. Na verdade, o tempo não passa de uma ilusão porque só posso ter a certeza do Presente. Será que tudo aquilo que aprendemos não o sabíamos já, mas estava à espera de ser relembrado? Talvez por isso sejamos incapazes de idealizar períodos de tempo muito superiores à duração da nossa vida ou até mesmo isso explique porque nos parece o tempo acelerar à medida que envelhecemos. Cinco minutos de criança podem ser uma tarde inteira, na idade em que o tempo se mede em pedaços determinados pelos braços abertos ou por dois indicadores esticados à frente da cara. Mas o curioso é que na altura, não parecia ter sido uma tarde inteira. Seria porque a noção de tempo das crianças está associada à quantidade de memórias? Aliás, as tardes não tinham fim e os anos demoravam um ano inteiro a passar. Agora demoram só doze meses.
Tenho a certeza de que a minha mãe também se recorda dos pedaços de tempo medidos entre os dedos. Partilhamos memórias em tempos diferentes. E aqui reside mais uma falha na minha teoria de que tudo não passa de um sonho. Será possível sonhar as memórias de outros?
Não sei se envelheci de repente, mas o tempo em Angola passa muito mais depressa do que em Portugal. Estes primeiros meses voaram.
E o que me levou a escrever tudo isto? O panorama radiofónico angolano não nos surpreende só com o seu programa semanal sobre os Beatles. É Domingo e os seguranças estão a ouvir o programa desportivo da rádio nacional. A música de fundo é Jean Michel Jarre (Equinoxe V)… já só me faltava falar das memórias despertadas pela audição, não era? Fui transportado para os primeiros anos de escola, quando era frequente ouvir Jean Michel Jarre na rádio. Lembrei-me do vai-e-vem Challenger que explodiu após descolar e da música que foi dedicada aos que lá morreram (Rendez-vouz IV).
Será um sonho, esta brisa que recordo?
A palavra “Aerograma” vive na minha memória enroscada em cheiros de pó e fumo espalhados por coluna militar.
Será que um dia “Aerograma” passará a estar na minha memória vestida de laranja de pôr de Sol e braços de embondeiro a puxarem-me para outras memórias?
Haverá memórias capazes de desalojar outras memórias?
Haverá melhor reconhecimento que um comentário destes?
Bem haja!
Depois de ler este texto, carregado de tantas memórias que se abraçam e entrelaçam nas minhas, apetece-me dizer: “…como um adolescente tropeço de ternura por ti”
(Alexandre O’Neill)
Caro Afonso
Não consigo de parar de vasculhar o teu blogue… muito bom!
Para quem procura informações de Angola como eu o faço regularmente este é sem sem dúvida o melhor que encontrei.
Em relação aos “cheiros” que mencionaste é sem dúvida a melhor e mais presente memória que todos aqueles que nasceram ou simplesmente por aí passaram podem ter. Eu vim daí muito novo mas quando estive em Angola em 1998 descobri cheiros inebriantes que estavam esquecidos no meu subconsciente.
Certo que Angola tenha ganho mais um “filho” espero que por aí continues a ajudar a “nossa” terra a crescer.
Felicidades
sonhos que ja vivi
A propósito de literatura angola uma professora de Português da minha escola pediu-me colaboração para ler um conto de Agualusa usando sotaque angolano (nisso sou exímea. Como me diziam quando revisitei Angola : – Não é de imitação, é do coração!),
Como as palavras são como as cerejas falei do Aerograma. Resultado… já estou cravada para ir falar a uma turma sobres aerogramas.
Há vinte e tal anos era comum ter alunos em Economia ou Sociologia cujos pais tivessem feito a guerra colonial e portanto, tivessem AINDA por casa aerogramas. Acabámos por fazer uma recolha de aerogramas que foram depois doados/depositados no Centro de Documentação 25 de Abril. Estes aerogramas eram amarelos ou azuis e tinham cheiro de pó e fumo, de coluna militar.
No próximo encontro a convite da professora de Português vou falar também de outros aerogramas: laranjas de pôr de Sol e com braços de embondeiro a puxarem-me para outras memórias. Assim me autorize o autor deste blog.
Obviamente que sim, porque o Aerograma não é só meu.