O tesouro do Jacaré
Afonso Loureiro
Nas primeiras semanas em Angola, a caminho do trabalho, cruzava-me sempre com um jacaré, que se dizia comer criancinhas e candongueiros. O borbulhar sinistro nas águas escuras na sarjeta da esquina anunciava a presença sombria. Quem passava perto do buraco quase adivinhava o roçar das escamas duras contra as paredes dos tubos e tremia de medo com a ilusão de que uma imensa boca cheia de dentes afiados saltaria para se lhe agarrar a um membro.
Alguns taxistas mais descuidados, assisti eu, foram vítimas do monstro. Nem todos viram a iáce desaparecer sem rasto, mas duvido que tenha sido fácil explicar as fundas marcas de dentes na metade que sobrou da carrinha.
Um dia deram caça ao bicho. Talvez tenha tido a ousadia de espreitar durante um passeio do Zé Dú e a diligente guarda presidencial deu-lhe cabo do canastro. Ou então mordiscou o pneu do Hummer de um general bem posicionado. O buraco apareceu coberto com uma laje de betão armado, em jeito de lápide caída ou campa rasa. Alívio, gritaram os candongueiros! Alívio, gritaram as mães de miúdos pequenos!
Os varredores começaram a arriscar trabalhar naquela esquina e o lixo foi desaparecendo aos poucos. Até ao dia em que se acabou. Não mais houve montes de lixo perto da toca do jacaré. Mas o trabalho precisava ser feito e, como a esquina até é agradável e bem localizada, os varredores foram por ali ficando. Quase podíamos jurar que tentavam puxar o lustro à estrada, pelas inúmeras vezes que a varriam depois de varrida.
À superfície o lixo tinha desaparecido e, não sei se por incitamento dos supervisores ou por iniciativa própria, começaram a olhar, cobiçosos, para a campa do jacaré que tanto os assustava. Dizem que os crocodilos levam as presas para o fundo, onde esperam que apodreçam. O Jacaré da Revolução de Outubro não era diferente dos demais. Aquela toca devia estar cheia de cangalhada. Sorriram uns para os outros e mandaram vir um carro para aspirar fossas. Era preciso tirar a água que escondia o Tesouro do Jacaré!
A máquina veio e o longo tubo esverdeado, parecido com um verme que se contorce, mergulhou no líquido cinzento e espesso da sarjeta. Aos poucos, engasgando-se e tossindo, foi sugando o esgoto da toca do jacaré. Antes de entrar para o tanque, parte do líquido espichava de volta para a rua, enchendo as valetas e o ar com um líquido nojento e um cheiro nauseabundo. As pessoas tapavam o nariz e franziam o sobrolho. Os cantoneiros, esses, esticavam os pescoços para o buraco, tentando controlar a vontade de vomitar.O fedor fazia-os chorar, mas insistiam. Talvez já se visse o tesouro, sonhavam.
Um, mais afoito, começou a remexer o fundo do buraco com um gancho. De vez em quando prendia-se em alguma coisa e ela puxava-a, decidido. Uma lata de óleo de palma. Um chinelo. Uma embalagem de lixívia. Dois sapatos amarrados pelos atacadores. Pedaços de cartão empapado. Nada de riquezas. Nada de fortuna. Desânimo. Mais chinelos…
Outro tomava o seu lugar manobrando o gancho e pescava mais calçado e umas quantas latas de refrigerante amassadas. Outro ainda, de luvas grossas, atirava tudo para um carrinho-de-mão, verificando sempre se não tinha escapado algo de interesse.
A tentativa de encontrar alguma coisa de valor fê-los desviar a atenção da enorme quantidade de sapatos que pescavam. Quantas vítimas fez aquele jacaré? E os sapatos amarrados um ao outro? Será que alguém se livrou de um indivíduo incómodo, atirando-o ao bicho? As histórias de atirar pessoas de helicópteros para as matas ou para o mar são pouco imaginativas, comparadas com atirar um rival ao jacaré da sarjeta. Isso sim, é ser cruel!
Muitos chinelos pequeninos mostravam a preferência do animal pelas carnes tenras. Suponho que a mortalidade infantil tenha descido em flecha desde que o mataram… acho que é esse o verdadeiro Tesouro do Jacaré!
Afonso, desculpe a provocação, mas achei que este texto é magnífico!
Um abraço
Fernando Pereira
Alberto Pimenta sobre os Portugueses:
OS PORTUGUESES não formam uma sociedade porque não são sócios uns dos outros. Tomemos os exemplos mais corriqueiros. Na cidade velha, vai-se pela rua e pode-se apanhar com sacos de migas de pão ralado, atirados aos pombos, na cabeça. E a rua está cheia de cagadelas de cão, coisa que não se vê em mais cidade nenhuma, porque cada um entende que o espaço público se pode sujar à vontade. Lisboa é habitada por uma horda que usa fato e gravata e anda de automóvel, mas que não chegou sequer ao patamar mínimo de civilização urbana. Começa-se sempre de cima para baixo. A Lisboa 94, com a sua falta de ideia, fez várias coisas em cima sem haver nada em baixo, confundiu arte com cultura. A cultura começa nas ruas onde se pode andar, no ambiente cuidado, nos jardins tratados, que não existem.
Há um total desprezo do próximo, uma falta de noção dos direitos e deveres urbanos civilizacionais. Soube agora de um caso que se passa num prédio normal do centro da cidade. Há alguém que guarda a moto do filho de família no patamar entre o terceiro e o quarto andares e, quando Ihe vão dizer que não o pode fazer, essa gente que é licenciada fecha a porta, dizendo: «A moto é minha, eu faço o que eu quero!» Tal e qual como o sapateiro que bate no filho e diz: «O filho é meu, eu faço o que quero!». É a sociedade do «salve-se quem puder». A maior parte das discussões que se geram em bichas, em lugares públicos onde se reclama um direito, resulta da falta de noção muito exacta que qualquer alemão, francês ou italiano tem dos seus direitos e deveres. Aqui é tudo uma «questão particular». Passa a não ser uma sociedade organizada mas um clã. É simpático, de repente, encontrarmos uma grande humanidade e intimidade onde menos esperávamos. Sabe bem mas o preço é caro, implica um dia-a-dia desgastante, onde tudo funciona improvisada e desastradamente. Nem se pode andar pelas ruas porque os carros ocupam os passeios. São insignificâncias que vão criando e alimentando quotidianamente um mal-estar, um cansaço, uma perda de energia. Quando ando pela Baixa duas ou três horas, começo a sentir um esgotamento de tipo espiritual, ao contrário do que acontece em qualquer cidade europeia em que fico mais alerta, enérgico e cheio de ideias. Aqui, começo a arrastar os pés e a andar em passo de procissão, que é como fazem os portugueses, um pouco vergados, dai a metáfora de trazer um peso nas costas. Há, de facto, um peso qualquer que está lá dentro, nas costas do espírito. Este país é como uma eterna pequena constipação.
E esta fatídica vocação para as pantufas… Conta-se que, depois do terramoto, alguns aristocratas que ficaram sem palácio instalaram-se em barracões onde é hoje o Rato, com grande promiscuidade e as couvinhas lá atrás. Quando os palácios ficaram prontos, não queriam sair, pois era ali que lhes sabia bem. Isto define a mentalidade portuguesa.
A arte em Portugal não tem a ter com a vida. O museu e o espectáculo são coisas que se passam em lugares fechados, com horário e um culto feito em grande parte de snobismo e de obrigação social. Daí o grande desconforto dos artistas em Portugal, uma espécie de marcianos, porque aquilo que fazem não tem nada a ver com os interesses da sociedade. Em Itália. o cidadão mais humilde tem uma intuição, um conhecimento e uma veneração pela arte que aqui terá talvez o equivalente na veneração pela Nossa Senhora de Fátima. Até coincide porque é a veneração por um desconhecido, pelo que está para além da razão. Se não houvesse motivos exteriores, não creio que fizesse falta a quem quer que fosse ir a exposições de pintura, ao teatro ou à ópera.
Há um egoísmo perfeitamente catastrófico que caracteriza os portugueses. No seu dia-a-dia, desde que tenha resolvido o seu problemazinho e possa comer o seu bifinho com batatas fritas ou o seu bacalhauzinho, já tira dai um prazerzinho que o deixa satisfeito. O Eça usou todos esses diminutivos com razão, porque tudo é pequeno, da dimensão ao espírito. Satisfazem-se com pouco.
Outra característica dos portugueses é ter medo do risco, podem cair no ridículo, que fica muito mal. Ora para fazer grandes coisas, é preciso arriscar cair do trapézio. Mas os portugueses preferem trabalhar com rede ou então a um metro do chão. Os Descobrimentos foram uma necessidade porque essa gente que vinha do Norte do Pais, a cair de fome e a morrer pelo caminho, não tinha outra hipótese. E não esqueçamos os mercenários. Os relatos deixam-nos imaginar o tormento daquelas viagens, com doenças e sem comida, em condições de puro desespero. Depois, lá veio a mitificação histórica. Obviamente haveria alguns, poucos, a começar pelo infante D. Henrique, que teriam o seu projecto de alargar a Terra, de chegar a qualquer lado e de tirar lucro, que é o que faz correr o homem. O Camões diz textualmente, n’Os Lusíadas, que «nunca houve nação, nem bárbara, que prezasse tão pouco as artes como a portuguesa». E o padre António Vieira dizia, naquelas etimologias divertidas, que o mundo é mundo porque, por antífrase, é imundo tal como a Lusitânia se chama assim já que não deixa luzir ninguém por causa da inveja. E podíamos continuar com o Eça, com o António Nobre, com os que reflectiram porque tiveram oportunidade de comparar… (…).
Vivi na Alemanha muitos anos e pude constatar que o mito do amor ao trabalho dos Alemães é falso. Não gostam de trabalhar, mas sabem que e preciso. Por isso, fazem-no o mais eficientemente possível. Durante o trabalho, os alemães não conversam sobre futebol nem as alemãs falam de meninos, como aqui. E fora dele é tabu falar sobre isso. Ao contrário de Portugal, onde se passa o almoço a falar do trabalho, uma paranóia perfeita.
Enquanto a Europa é urbana e civilizada há muito tempo, em Portugal o crescimento faz-se por saltos muito grandes. Temos a ideia de que o progresso é deitar fora o que há e substituir pelo novo, o que mostra que não o conseguimos integrar. Em cada época, há elementos que definem o novo-riquismo. No século XVI, o embaixador do Papa escrevia para Roma a dizer que não entendia porque é que o barbeiro, um homem muito pobre, tinha um pretinho para Ihe carregar a bacia quando ia fazer a barba a casa do cliente. Na Segunda Guerra, houve o boom dos novos-ricos do volfrâmio e dizia-se que eles comiam a sardinha assada com pão-de-ló. Hoje continua e, apesar do novo-riquismo destes anos em que já somos europeus, basta por o pé para lá da fronteira para perceber que somos cada vez menos em termos culturais. Temos o mito das melhores praias, dos melhores vinhos, mas quanto tempo vão durar? Há terrenos próximos de Lisboa, na zona do Ribatejo, que estavam classificados para agricultura exclusivamente. Há três ou quatro anos saiu um decreto que permite utilizá-los para campos de golfe desde que sejam reconvertíveis. Daqui a 15 anos, comeremos bolas de golfe em vez de couves…
Os Ingleses, mesmo lá no extremo do Sahara, continuam a manter a nacionalidade e a beber o chá das cinco porque têm uma personalidade forte. Mas um português na Alemanha, ao fim de cinco anos é alemão, e no Japão torna-se um autêntico japonês. Tem uma capacidade espantosa de adaptação, uma qualidade que lhe facilita a vida, mas que é sinal de uma personalidade fraca. O nosso racismo é económico. Tratamos com servilismo os que têm mais dinheiro que nós, embora haja quem diga que isso é a cordialidade do português a acolher os estrangeiros.
Tal como há quem diga que a língua portuguesa é o espanhol sem ossos. Compare-se o «quero-te» com o «te quiero»: enquanto num a entoação morre no fim, no outro a afirmação é evidente logo no som. É como se nem na língua tivéssemos coluna vertebral.
Portugal ficou a meio caminho entre o Norte de Africa e a Europa. E não se consegue definir. É pobre combinar as coisas sem definir uma ideia e uma identidade próprias. Não há, em Portugal, politica no sentido autêntico da palavra, uma ideia de sociedade para dar forma ao Estado. Não há partido que a tenha, excepto, talvez, o comunista, mas não é uma ideia própria. Os políticos portugueses, tal como os artistas, são preguiçosos, pouco competentes e bastante diletantes.
Diário de Notícias, 29 de Janeiro de 1995
Caro Fernando,
Não discuto a qualidade do texto, mas o que tem ele a ver com o artigo?
No entanto, consigo descortinar que o autor é o tipo de Português que descreve, que acha que só o que é estrangeiro é que é bom. Infelizmente, ou melhor, felizmente, não me revejo nestas palavras.
Não é a intransigência que se deve considerar força. A capacidade de adaptabilidade do Português ao mundo é que se deve louvar. Como se explicaria que tão pouca gente pudesse chegar a todos os cantos do mundo? Terá sido pela sua fraqueza?
Há que fazer das nossas fraquezas, força, já dizia Sun-Tsu.
Se a nossa língua é rica e nos dá as ferramentas mentais para, facilmente compreender os outros, não vejo como isso possa ser prejudicial. Se os outros povos não falam outra língua para além da sua, às vezes não é por questão de orgulho. É mesmo por incapacidade.