Cabidela humana
Afonso Loureiro
A vida dá muitas voltas. Por vezes numa escorregadela na casa-de-banho ou dentro de um Land Rover fora de controlo a despencar-se por uma ribanceira.
O nosso motorista, aquele que mata leões à bofetada e assusta os rinocerontes com o cheiro dos sovacos, deu uma dessas voltas na vida. Ou melhor, primeiro despencou-se no Land Rover e saíu ileso, depois, para comemorar, armou-se em candengue e pôs-se aos pulos na casa-de-banho e partiu uma perna.
Foi direitinho para o hospital público.
Não se antevê coisa boa, ao falar em hospitais públicos angolanos. Começamos logo a pensar num barracão com telhado de chapa ondulada e moscas, muitas moscas à volta de doentes apáticos nos cantos. Não podia estar mais longe da verdade.
Os hospitais públicos angolanos em nada ficam a dever aos melhores da Europa. São limpos, bem equipados e, acima de tudo, têm bons profissionais a trabalhar.
Dentro do hospital reina a calma. Para evitar as confusões típicas dos grandes ajuntamentos de africanos, as visitas são muito controladas à entrada dos portões. Duas visitas por doente e a identificação fica na portaria, para evitar as esquivas.
O fenómeno da perna partida precisa ser operado. Vai passar a ter um cabide na perna, com uns seis ou sete ferrinhos a segurar os pedaços do fémur no sítio. Agora já sabe onde pendurar as chaves de casa. Mas, antes de ser operado, precisa de dadores de sangue, não vá ser preciso durante o corte e costura ortopédico. A crise dos bancos de sangue é igual em todo o mundo…
Na empresa encontraram-se três voluntários para uma só unidade pedida. Fomos todos para o hospital esperar a vez de nos espetarem uma agulha no braço. O primeiro foi recusado após a primeira análise. Está doente e não sabia. Nada de grave. Tem cura. Depois foi a minha vez.
Fui pesado e respondi a uma série de perguntas acerca do meu estado de saúde. No entretanto, um enfermeiro trocava de luvas e tirava uma seringa esterilizada da embalagem. Amarrou-me um elástico ao braço e procurou uma veia. Desistiu. Amarrou o elástico mais acima e voltou a procurar. Preparou a agulha. Deixei-me escorregar pela cadeira, só para ter a certeza de que não me dava uma coisinha má. Segurou-me na mão e apontou a agulha. Desviei o olhar. A agulha entrou. O sangue saíu. A agulha saíu. Comecei a ouvir vozes ao longe. Muito ao longe. Fechei os olhos com força e pensei em gatinhos e coisa bonitas. Apeteceu-me dar um pontapé nos gatinhos, estavam a fazer-me ficar tonto. «Está a ficar branco!», julguei ouvir. «Mais?», acho que respondi. Tiraram-me o elástico. Fizeram-me cócegas com uma pena no nariz. Pelo menos parecia. «Acho que se dormir um bocadinho isto passa», pensei.
Dei por mim sem sapatos e meias a ser levado em braços para a sala ao lado. Deitaram-me numa maca e tiraram-me a camisola e o cinto. A pena no nariz voltou. Percebi agora que era um algodão embebido em alcoól.
Corre o boato que ainda me deram uns estalos. Não dei por nada. Muita galhofa à minha volta. Mediram-me a tensão. Baixa, como de costume. No questionário só me perguntaram se era hipertenso…
Fui reprovado no teste. Se fiquei assim por 3 cc. de sangue, não me podiam tirar outros 450. O que tenho está todo contadinho e, pelos vistos, não sobra muito para os outros.
O último voluntário para a sangria, julgando que se safava, ria-se e aproveitou para me fotografar numa triste figura. Passados uns minutos, estava ele na maca do lado, a reclamar do tubo grosso que lhe desviava o sangue do braço para um saco de plástico.
Já está tudo bem
No final, enquanto a enfermeira fazia uma ginástica esquisita para selar a unidade de sangue vermelho-escuro do meu colega, deixou escapar a pinça que estancava o tubo. Um esguicho vermelho sujou cadeira, chão e balança. Um cheiro ferroso encheu a sala. Ficámos todos a pensar no almoço.
Estavas-te a rir, não estavas?
Três horas depois de termos chegado ao hospital, saímos com a sensação de dever cumprido. A operação já pode começar.
E o almoço não foi cabidela…
És um menino 😛
(digo eu que nunca tive coragem de ir lá espetar a agulha no braço, com muita pena minha)
um abraço
É verdade, sou um menino. Tiram-me três gotas de sangue e caio para o lado…
Mas assim nunca mais me pedem para lá ir.
Se calhar tambem tens os eritrócitos baixos!
É de coragem e não é para todos.
Pelo menos tentaste é só por isso já valeu a pena, foi um acto de coragem digno de um heroi.
Amo-te!
Concordo com o Nuno (que não conheço): és um menino!
Anyway, as melhoras para o Sr. P., parece que anda numa maré de azar. Quanto aos hospitais… uma inesperada surpresa!