Aerograma

Isento de Porte e de Sobretaxa Aérea

10 2009

Mas que grande lata

Numa rua secundária que se converteu em avenida principal graças ao desvio a que a obra eterna obriga, o trânsito estava tão parado que quase parecia andar para trás. De vez em quando lá se vislumbra uma carrinha a cabecear enquanto mergulhava numa das muitas piscinas de águas negras e cheiro característico que esconde os buracos mais fundos. Os peões vão saltitando de pedrinha em pedaço de sucata, evitando a lama fétida.

As duas filas de trânsito que seriam normais converteram-se em três para cada lado. Há sempre quem ache que tem mais pressa que os demais e se sinta no direito de ultrapassar a fila na contra-mão, gozando com a cara de quem cumpre o código e obrigando os que vêm em sentido contrário a desviar-se para os muros ou buracos fundos. Para além destes, há os que aproveitam um pouco do passeio desocupado para imitar a proeza, desta vez pela direita.

No cruzamento, quem chega primeiro é rei, mesmo que isso implique trancar tudo durante largos minutos, desprezando a hipótese de efectuar manobras que facilitem a vida aos outros. Sabe perfeitamente que, se não for ele a fechar o cruzamento, alguém o fará sem remorsos.

Nos bloqueios mais graves, os carros que cruzam a rua para virar à esquerda acabam por impedir a passagem dos que seguem em sentido contrário. Estes bloqueios chegam a demorar tanto tempo que o quarteirão seguinte fica com trânsito num só sentido e os espertos aproveitam para ocupar a faixa contrária, impedindo ainda mais a circulação. Porque todos têm pressa e são incapazes de ceder passagem nas alturas devidas, ficam a olhar uns para os outros, a esbracejar e a buzinar.

Ferro-velho com carros amontoados
Trânsito organizado

Para se avançar é necessário furar, circular colado ao pára-choques do carro da frente, cortar trajectórias.

Foi numa destas situações, em que, para evitar a entrada abusiva de um candongueiro vindo do passeio, me colei ao carro da frente. Quem vinha atrás de mim fez o mesmo. Pela esquerda, um todo-o-terreno ultrapassava a fila desde o cruzamento anterior, parando mesmo ao meu lado porque vinha um maior no sentido contrário a fazer-lhe sinais de luzes e a chamar-lhe nomes.

A fugir do trânsito e a tentar atravessar a rua, vinham três mulheres. Não podiam passar à frente do carro que me antecedia por causa da lama, não podiam passar à frente do meu porque o espaço era apertado e não podiam passar entre o meu e o do esperto porque ele já estava colado a tentar entrar na fila.

Nisto, ao ver o embaraço das mulheres, abriu o vidro e gritou-me, irado, «Tem que ter humanidade e deixar as pessoas atravessar…»

Pensei cá para os meus botões «Fazes a merda e depois sou eu quem paga as favas?»

O carro da frente avançou, esperei que as mulheres atravessassem e segui viagem. Reparei, pelo espelho, que os quatro condutores seguintes também não o deixaram entrar…

Acerca do autor

1

Nascido no século passado com alma de engenheiro, partiu para Angola, de onde envia pequenos aerogramas.

9 respostas a “Mas que grande lata”

Nota: Comentários mal-educados, insultuosos ou desenquadrados serão apagados.
  1. Aii santa paciência!! Que é precisa muita!

    Por outro lado, faz-me espécie, sabendo que demoram horas para meia duzia de kilometros, como é que ainda ninguem se lembrou de usar mota? ou mesmo bicicleta, sei lá, qualquer coisa que não faça stressar tanto… eu própria cogito uma mota, e apenas para a hora de ponta da A5, que a comparar com a daí (não têm hora é todo o dia né?) devem ser passeios de domingo.

    Haja pachorra.

  2. 1 – Será que a “lata” portuguesa tem o mesmo significado da “mala” brasileira ? (aquela sem alça e sem rodinha…)

    2 – Afonso, você precisa escrever um post sobre as motas de Luanda. Conta prá Susana, conta…

  3. Conta só, Afonso… ai as rápidas, tanto para escrever… lol

  4. “Lata” não é o mesmo que “mala”, é talvez aquilo que os “malas” têm, um descaramento a toda a prova, que os faz manter a compostura mesmo quando fazem asneira… e fazem todos os outros parecer culpados.

    Quanto às motas, já tenho algumas coisas escritas:

    A estrada mais congestionada da Europa
    No fim só pode haver um
    Kazucutas

  5. Reli os posts que lincaste e continuo sem perceber por que a mota não é solução. Está bem que há malucos, mas significa que os responsáveis não podem utilizar esse veículo? E o outro, sempre foi andando 20 em 20 metros, metendo conversa com os demais. Há-de ser mais enriquecedor, ou pelo menos escapará à rotina do parado paradíssimo. Não sei, é que me faz confusão as pessoas saberem que vão demorar 2 horas para fazerem meia dúzia de kilómetros, diáriamente, e conseguirem sobreviver aos nervos.

  6. Eu próprio já ponderei andar de mota em Luanda, mas depois de ver motas a chocar de frente mudei de ideias…

  7. Olá a todos..é a 1ª vez que crevo neste blog (espero que não se importem), de facto não li os links que falaram mas 6 meses de pura luanda ajudam a ter uma ideia do escreveram.
    As motas e bicicletas bem que podiam ser a solução, dado que há coitados que acordam às 5h para entrar no trabalho às 9h…mas…é demasiado perigoso! maior parte das pessoas atravessa a cidade para ir trabalhar, tem sempre que atravessar “musseques”, bairros menos seguros..etc.
    Além de que existem alguns factos interessantes que levam à maior utilização do carro:
    – desejo de mostrar poder por parte dos mais ricos
    – quem nada tem enfeita/pinta o carro de forma a dar nas vistas…claro que ter mota é ser um humano inferior
    – devido a dezenas de anos de guerra existem muitas as mulheres a trabalhar em escritórios
    – as “carradas” de emigrantes que estão a trabalhar nas construtoras e nas petrolíferas pouco se importa com o tempo perdido..quer estar em segurança

    humm..penso que é tudo..
    espero ter ajudado 🙂
    cumps

  8. Hummm…..
    Felipe, acho que não concordo consigo. A mota não tem nada de inferior, muito pelo contrário. Lembra da propaganda da gasosa? “Como é que se pede uma fanta manga em Angola?
    – Gostosa, queres uma boléia na minha mota? Traz aí uma do dragão…”
    Não era fanta, mas era manga.E o cara era “o” cara, superpoderoso, rei da cocada preta.

  9. Na minha opinião é mesmo a questão da segurança na via. Num acidente com uma mota neste trânsito parado imaginas quanto tempo é que demora a chegar uma ambulância? Mais, o facto de estar ali um indivíduo indefeso estatelado no meio do chão dá ideias aos amigos do alheio.
    Para ajudar também tem que se analisar as condições das vias, cheias de buracos e areia, o comportamento da maioria dos motoristas e dos candongueiros em particular, que manobram sem olhar para os retrovisores, os assaltos (se já se fazem aos carros imaginem nas motas), etc.
    Também a mim me passou pela cabeça andar de mota. Até que andei…

Deixe uma resposta

Nota: Os comentários apenas serão publicados após aprovação. Comentários mal-educados, insultuosos ou desenquadrados serão apagados de imediato.

« - »