Coincidências
Afonso Loureiro
Apesar de haver dias em que acreditamos sermos apenas um minúsculo grão de poeira num mundo imenso, outros há em que nos convencemos de que, afinal, está tudo muito mais próximo do que julgamos e as relações humanas entrecruzam-se de formas inesperadas.
Descobrimos também personagens que surgem amiúde nas nossas histórias, sem razão aparente. O motorista da empresa em Angola, o fenómeno descrito noutros episódios, é uma delas. De vez em quando intromete-se em histórias alheias, quase como um Deus Ex Machina de romances de cordel.
Ao deixar Angola, julguei ver-me livre das entradas, nem sempre oportunas, do fenómeno nas histórias que tento contar. Claramente, foi um excesso de confiança, uma vez que continuo a tropeçar no valente caçador de leões com fisga.
Conheci o Sr. C. quando fui ver a capa do livro ser impressa. Era o tipógrafo que operava a máquina de offset. Pediu-me desculpa por estar de trombas, mas tinha ido para Angola com três anos e viveu lá os vinte e seis seguintes. Era também um retornado e o livro que imprimia fazia-o lembrar esses tempos. Tentando aligeirar o ambiente, perguntei-lhe o que fazia em Angola. Tinha sido tipógrafo desde sempre. Começou a trabalhar com doze anos e agora, cinquenta anos depois, ainda fazia o mesmo.
Tipógrafo em Luanda? A expressão pareceu-me familiar e depressa me recordei do fenómeno, que também tinha exercido a profissão na Rua Salvador Correia, hoje Rainha Ginga.
A conversa rapidamente descabou em troca de referências, nomes e datas, para saber se alguma vez se tinham cruzado o tipógrafo que me imprimia o livro e o tipógrafo que me apresentou a verdadeira Angola. Sendo quase dez anos mais novo, é provável que se tenham cruzado, mas os mais velhos raramente davam confiança aos aprendizes e, entretanto, o Sr. C. veio para Portugal em 1975.
Voltou a Angola no princípio da década seguinte, como cooperante, mas acabou por abandonar de vez a terra que lhe faz brilhar os olhos quando o filho começou a escola.
Última chapa – Guerra e retornados
Da última vez que conversámos, confessou que tinha lido algumas passagens do livro enquanto afinava a máquina, coisa que não costuma fazer. E depois segredou-me: «Aquilo não mudou nada. Já em 82 era assim!»
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