Auto-destruição
Afonso Loureiro
Há muitos anos, não sei bem quantos, comprei um telefone um pouco mais apropriado para o trabalho de campo. Na altura eram quase todos delicados como os modernos, e avariavam-se se houvesse boatos de chuva na cidade vizinha ou se fossem enfiados no bolso com menos cuidados que os merecidos por um diamante valioso. A grande diferença para os de hoje é que só faziam chamadas e mostravam mensagens 20 caracteres de cada vez.
Na altura anunciavam-se telefones topo de gama, caríssimos, que até tinham uma máquina fotográfica miserável acoplada. Ninguém conseguia perceber exactamente para que serviria, mas todos ficavam boquiabertos com as imagens que capturavam. E que más imagens eram.
Dizia eu que comprei um telefone novo. Era robusto. Resistia a quedas maiores e até andava à chuva com uma certa confiança. Foi usado e abusado por muitos anos e só passou à reforma quando se tornou arcaico e limitado.
No entanto, quando fui à Tunísia, o ar robusto mas transportável do pequeno Nokia 5550 mostrou ser cativante para muita gente. Em Douz, conhecida cidade no meio do deserto onde os turistas vão dar uma voltinha de dromedário como se num carrossel, houve até um vendedor de rosas do deserto que mo quis comprar. Veio a regatear comigo uma centena de metros, carregando um pesadíssimo balde cheio de cristais de gesso e oferecendo mais do que o telefone me tinha custado novo. Devo ter sido parvo, mas preferi ficar com o telefone.
A propósito de Douz, a cidade que já foi a porta do deserto e o primeiro indício de água fresca depois de atravessar o imenso lago salgado de Chött-el-Jerid, é também o local onde se assiste ao mais estranho espectáculo de todos. Muitos dos que vão passear de dromedário podem optar por alugar uma jelaba, uma espécie de roupão leve com capuz que cobre uma pessoa da cabeça aos pés e muito confortável em climas quentes, ou um turbante para proteger a cabeça do Sol. Algumas pessoas torcem o nariz à jelaba – «Sabe-se lá quem é que já vestiu isso!», mas depois sorriem e agradecem que lhes ajeitem o turbante alugado. Estranhamente, vestem a jelaba por cima da roupa, mas o turbante vai-lhes absorver o suor da cabeça, tal como já o tinha feito a dezenas de pessoas antes. Não percebo porque razão o turbante lhes faz menos confusão.
Mas voltando ao telefone. Apesar de já estar na reforma, foi comigo para Angola. Poderia haver necessidade de o usar. Como a bateria, mesmo velha, durava mais de uma semana, foi o telefone de emergência sempre que não podia carregar o outro. O resto do tempo, passava-o na minha mesinha de cabeceira, à espera de serventia.
Ora acontece que lá na Mutamba era costume aparecerem-nos um ou dois ratos por mês. Às vezes mais, outras vezes menos. Depressa descobrimos que durante o dia exploravam a casa toda, deixando marcas aqui e ali. A que mais me irritou foi a de apreciarem a borracha macia da protecção exterior do telefone à prova de tudo. Rataram-no bem ratado. O telefone passou a ostentar três fundas cicatrizes que comprovam a visita a Luanda.
Com as cicatrizes de Luanda
Regressei, e voltou à gaveta. Até ao dia em que fosse preciso. Ao contrário de outros, nunca deixou de funcionar. Voltou ao trabalho durante uma reparação ao telefone novo, um daqueles com mais uma tonelada de mariquices, incluíndo um autoclismo de água morna e mesa de matraquilhos, mas frágil e delicado.
Por ser tão robusto, achei que estaria pronto para uma ou duas semanas de uso. O que não contei foi com a protecção de borracha ter ressequido de tal forma que todos os botões se desfazem assim que lhes toco. Talvez a Nokia lhe tenha incluído um prazo de validade findo o qual o telefone se desintegra lentamente. Infelizmente para eles, é só a capa que sofre desse mal e a electrónica continua perfeita. Devia-o ter vendido ao tunisino.
Agora caem-lhe os botões
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