Técnicas ancestrais
Afonso Loureiro
Há quem julgue que a agricultura tradicional esteja agora esquecida, anestesiada pelos subsídios à não-produção, pelo preço do gasóleo, ou simplesmente abandonada nas mãos dos mais velhos, esperando que com eles morram tradições cuja origem se perde no tempo. Em parte é verdade. Os agricultores portugueses são coisa do passado. A política agrária de Bruxelas assim o ditou. Quem não cultiva produtos padronizados segundo técnicas padronizadas para agradar a cadeias de distribuição padronizadas não pode aspirar a ganhar a vida da terra.
Os distribuidores não querem saber se a maçã camoesa é mais saborosa que uma fuji ou uma granny smith. Querem apenas a que fica mais bonita na prateleira e, se vier encerada para mais brilhar, ainda melhor; vendem o aspecto, não o paladar. Quem vende quantidade quer uniformidade, quer poder encomendar tantas toneladas de maçãs e confiar que serão tão iguais umas às outras como pratos de plástico, independentemente do produtor. No final, acabam por ser maçãs com o mesmo sabor dos pratos de plástico.
Lentamente, não só as técnicas de produção se vão tornando mais iguais, como a própria variedade dos produtos que consumimos diminui, colocando-nos numa dependência arriscada de uma mão-cheia de produtos que, no caso de alguma praga agressiva, poderão quase desaparecer, como já aconteceu com as batatas há quase dois séculos, com várias variedades de bananas e algumas estirpes de cereais.
Na agricultura tradicional reside a esperança de que nem tudo seja substituído por hortaliças, legumes e frutas de plástico, mas olhando para os campos cada vez mais abandonados, a esperança esmorece.
Lembro-me que a caminho de Ebanga encontrei rapazes a lavrar um campo com uma junta de bois. Nos dias anteriores tinham colhido batata-doce e preparavam o terreno para a próxima cultura. Na altura achei que era um sinal de esperança, ver que os homens voltavam aos campos em vez de se perderem na guerra. Achei que já não veria semelhante quadro em Portugal.
Afinal estava enganado. A agricultura tradicional subsiste exactamente no local onde as técnicas padronizadas não se aplicam, no local onde as parcelas são tão pequenas que os programas de classificação automática de imagens de satélite as interpretam como erros e a mecanização é dificultada porque não há espaço para a manobra das máquinas.
Em Pardelhas, uma pequena aldeia encavalitada nas vertentes inclinadas dos montes do Concelho de Mondim de Basto habitam umas poucas dezenas de pessoas, quase todos velhos. Aqui uma parcela generosa pode reduzir-se a uma leira de trigo (uma tira de terreno com a largura que se consegue semear o trigo à mão). Podia-se pensar que apenas encontraríamos os velhos curvados pelo tempo a tratar dos campos, mas o que se encontra são as gerações mais novas a perpetuar a única forma de cultivar tão pequenas parcelas.
Ainda se gradam os campo com juntas de bois
Num pequeno recanto a meia encosta, encontrámos duas famílias a tratar da terra. A filha mais velha de um casal conduzia a junta de vacas que arrastava a grade para desfazer os torrões que o arado deixou. O pai guiava a grade e dizia ter consciência de que este já não era um quadro vulgar. A filha concordava e achava que talvez por manterem as tradições vivas pudessem trazer alguns turistas à terra, nem que fosse para verem como se fazia. Tinha os gestos estudados de quem executa uma tarefa há muito aprendida, levando as vacas a percorrer todo o terreno e fazendo-as inverter a marcha nas zonas mais estreitas sem que houvesse confusão. Ajudaria também a quebrar um pouco o isolamento, acrescentou.
Trabalho em conjunto
Para o quadro ficar completo, só me parece ter faltado um par de miúdos sentados na grade para fazer peso. No seu lugar seguia um bloco de cimento. A falta de crianças no interior também se revela nestes pormenores.
Lentamente, não só as técnicas de produção se vão tornando mais iguais, como a própria variedade dos produtos que consumimos diminui, colocando-nos numa dependência arriscada de uma mão-cheia de produtos que, no caso de alguma praga agressiva, poderão quase desaparecer, como já aconteceu com as batatas há quase dois séculos, com várias variedades de bananas e algumas estirpes de cereais.
Ainda hoje se podem ver no Alto Douro muitos socalcos que estão em total ruína e cobertos de mato. São os chamados mortórios. São socalcos onde se cultivavam vinhas que foram destruídas, no séc. XIX, por uma praga terrível que por pouco ia destruindo para sempre a produção de vinho do Porto: a filoxera. Muitos agricultores ficaram então completamente arruinados, porque não cultivavam mais nada a não ser vinha. Aqueles foram tempos terríveis para a população local, tempos de grandes fomes. Tem havido recentemente tentativas de plantar em mortórios (devidamente recuperados e adaptados para o efeito) oliveiras ou amendoeiras, mas ainda há muitos mortórios ao abandono.
Quem não cultiva produtos padronizados segundo técnicas padronizadas para agradar a cadeias de distribuição padronizadas não pode aspirar a ganhar a vida da terra.
Há alguns anos, no Reino Unido, foram destruídas toneladas de morangos em perfeito estado de conservação, porque não tinham a forma determinada pelas normas da União Europeia para os morangos, que era a forma de coração. Acontece que aqueles morangos tinham ficado com uma forma mais ou menos cúbica, em resultado do acondicionamento a que tinham estado sujeitos. Embora fossem bons, foram todos deitados fora. Os morangos «quadrados» e os burocratas de Bruxelas foram então motivo para diversas anedotas entre os ingleses.
Nem mais. Homogeneidade pode parecer que facilita, mas a falta de variedade tem mais riscos do que habitualmente se imagina. Viva os morangos cúbicos!
Diz-se que, durante essa grande praga de filoxera, as vinhas de Colares não foram afectadas, exactamente por não usarem as mesmas técnicas para plantar a vinha.