Aerograma

Isento de Porte e de Sobretaxa Aérea

24  08 2009

As regras oficiosas

Conduzir em Angola é uma actividade de risco. Quase uma aventura, dirão alguns. A grande maioria dos condutores não tem a mínima ideia do que anda a fazer, mas está convencido de que sim. Sabem como levar o carro de um lado para o outro, e pouco mais. Alguns conhecem apenas duas regras de trânsito, a Eu primeiro e a Salve-se quem puder. Nenhuma delas faz parte do código de estrada pelo qual todos se deviam reger.

Se dentro de Luanda as coisas já são caóticas porque a primeira regra dita que todos fiquem parados em filas intermináveis, fora da cidade dá azo a situações muito mais perigosas. 

Depressa concluímos que o travão é apenas usado quando se pretende sair do carro. Durante o resto do tempo, apenas o acelerador é usado, e muito.

Se há um buraco grande na estrada e só passa um carro de cada vez, a solução habitual consiste em acelerar ainda mais e ultrapassar o buraco antes do carro que segue em sentido contrário. Se o outro vier na sua mão, que se desvie, afinal de contas, se chega depois, pela teoria angolana de resolução de problemas, o problema passa a ser dele. Infelizmente, assim que avistam o buraco, ambos aceleram o mais que podem, não vá a estrada desaparecer depois do outro passar. Não será necessário referir que às vezes não se desviam…

Na cidade, nos sítios onde só passa um carro e com pouca folga, há os condutores que insistem em passar em simultâneo, um pouco à semelhança do caso acima. Espelhos partidos, chapa almogada ou choque frontal são os desfechos mais frequentes. Nenhum dos condutores equaciona sequer esperar que o outro passe antes de entrar no aperto.

Chegamos à conclusão que o condutor médio angolanos se julga invulnerável, tais são as acrobacias a que se sujeita para cumprir a primeira regra do seu código oficioso.

O Senhor é a nossa Luz e Salvação
Resumo do código de estrada

A segunda regra dita que as ultrapassagens sejam feitas em todo e qualquer lugar ou situação, como curvas, lombas, traços contínuos, com trânsito de frente, pela direita, pelo meio de outras ultrapassagens, com chuva, nevoeiro ou poeira e, mais raramente, em rectas com visibilidade e sem trânsito de frente.

Se a fila estiver compacta, todos os expedientes valem para ganhar um ou dois lugares. Carrinhas azuis e brancas a circular nos taludes, quase a tombar ou com uma roda na berma e outra no passeio, são os exemplos mais normais do Salve-se quem puder, mas, se um atalho pelas areias da praia, permitir poupar uns minutos de trânsito, então será usado.

Como ter um carro à frente viola claramente a primeira regra, há que o passar, nem que seja recorrendo à segunda. É frequente ver os Starlet vermelhos a cair de velhos ultrapassar três camiões de cada vez, ocupando toda a faixa contrária e ver os camiões que circulam em sentido contrário a desviarem-se para a berma. Quanto mais se desviam, mas o carrito ocupa a faixa contrária, como que mostrando quem manda.

Camioneta enfiada dentro de casa
A casa não se desviou, malandra

Conduzir de noite é outro desafio porque, se durante o dia, todos usam e abusam dos sinais de luzes para pedir passagem à esquerda, o que é uma coisa que me fazia muita confusão até perceber que os piscas são usados para tudo menos para indicar as mudanças de direcção, à noite parece que é tradição andar de luzes apagadas. E de acelerador a fundo. E fora de mão. No fundo, é a segunda regra em todo o seu esplendor, tal como quando vemos gente a circular em sentido contrário nas ruas de sentido único e ainda reclamam com os que circulam no sentido certo e «que lhes estão a complicar!».

Em Luanda os acidentes com vítimas mortais são menos frequentes do que se temeria, um pouco porque o trânsito circula tão devagar que os acidentes mais graves se resumem a chapas amassadas e farolins estalados. Mas é fácil reparar que, ao mínimo trecho de estrada livre, cada um acelera o mais que pode, para depois travar a fundo antes de bater no fim da fila seguinte, a cerca de cem metros de onde começou a corrida… Às vezes o jornal noticia que dois candongueiros chocaram de frente lá para os lados do Cacuaco e a regra do Eu primeiro associada à do Salve-se quem puder resultou em vinte mortos e dois feridos ligeiros – os condutores.

Acerca do autor

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Nascido no século passado com alma de engenheiro, partiu para Angola, de onde envia pequenos aerogramas.

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