9
11
2011
Aquando do processo das independências dos países africanos que teve início após a Segunda Guerra Mundial, começaram a circular anedotas que envolviam Neto, Savimbi, Mondlane, Machel, Mobutu, Tschombé, Lumumba ou qualquer outra figura africana já morta e sem possibilidade de as refutar. Ouvi várias versões, especialmente com Samora Machel, por volta da altura em que morreu na queda do avião, altura em que anedotas inspiradas neste senhor estavam na moda. Antes e depois foram recicladas com outros nomes, claro está.
Uma das histórias envolvia sempre um comício e a promessa do fim do racismo. O dirigente gritava para a multidão entusiasmada que o racismo era coisa do passado e que no futuro do novo país não haveria nem brancos nem pretos. Para que não houvesse confusões, seriam todos verdes. Após os aplausos e prolongadas ovações acrescentava que verdes sim, verdes escuros e verdes claros!
Era Apartheid na África do Sul
No fundo, a anedota aludia apenas à troca da cor do regime e não ao racismo subjacente. Mas a verdade é que em Portugal existe mesmo o racismo verde. Está quase sempre à porta de tabernas da província e em cafés das cidades, está em restaurantes, em mercearias, mas também aparece noutros ramos. É personificado por um ridículo sapo de barro pintado de verde e tem como objectivo afastar os ciganos, tidos como clientes indesejáveis.
Parece que os ciganos têm muito respeito aos sapos, animais que consideram ser portadores de infortúnios vários. Especialmente os ciganos mais velhos evitam-nos a todo o custo, quer os verdadeiros ou os figurados ou até o próprio nome. Os mais novos já cresceram com a televisão e num meio menos fechado e não ligam tanto à superstição.
De qualquer das formas, não me parece nada bonito de um povo que se orgulha dos seus brandos costumes andar a afixar mensagens dignas de um apartheid sul-africano. Se em vez do sapo estivesse lá um cartaz a proibir a entrada a ciganos, negros ou verde-escuros, de certeza que já se tinha chamado a polícia.
Racismo verde
Mas depois de se conhecer o significado, descobrimos que não há realmente diferença nenhuma entre o aviso do princípio do artigo e o sapo na montra. Não afasta só os ciganos. Afasta-me também a mim. Há concerteza lojas com gente menos intolerante nas redondezas que me sirvam da mesma forma.
8
11
2011
Os escritores que acompanham Camões na estátua do largo do seu nome resistiram à aplicação dos arames para dissuadir os pombos de as usarem como poleiros. Ainda bem, porque assim teríamos ouriços em vez de vultos da Língua Portuguesa.
Como, apesar de tudo, cada estátua só alberga três pombos de cada vez, um na cabeça e outro em cada ombro, são poleiros disputados. É quase caso para dizer cada cabeça sua pomba

Pombos literários
Mas a estátua de Gomes Eanes de Azurara raramente merece pomba na cabeça. Não é por gostos literários das pombas, porque me garantem não saberem ler. Está voltada para o lado menos movimentado da praça, o que faz dela um poleiro com menos vista e menos lixo que garanta a refeição.
7
11
2011
É triste encontrar um CD atirado pela janela do carro. Mesmo que o artista seja o Marco Paulo dos dois amores. Mesmo que agora diga que já não há limite para o número de amores.
Fim do amor
Mas não deixa de ser algo poético encontrar o disco com o coração partido.
6
11
2011
Certas correntes do desenho arquitectónico defendem que forma sem função é inútil e quantos menos rabicoques se fizerem, melhor. Levando essa linha de pensamento às últimas consequências, obtém-se edifícios cúbicos de betão armado e tijolo à vista. Construção mais barata e só forma com função. Basta ver os subúrbios de Lisboa e descobrimos milhares de exemplos desta pobreza de desenho.
Felizmente que há muitos bons arquitectos que sabem perfeitamente que esta aproximação contabilística do desenho é estúpida. Há formas que são necessárias para equilibrar os edifícios, mesmo que a sua função não seja aparente.
Pala do terraço
O velho cinema São Jorge é um bom exemplo de uma forma depurada, cheia de linhas direitas que sugerem apenas função. No entanto, o terraço é rematado com uma cobertura assente em esteios.
Para que serve? Uns dizem que para nada, porque é estreita e apoiada na cornija, não protege ninguém do Sol ou da chuva. Na verdade, a sua única função é terminar harmoniosamente o edifício, suavizando a transição da parede para o céu. É uma forma cuja única função é ter forma.
5
11
2011
Enquanto conduzia debaixo de uma chuva persistente, insistente e irritante – daquelas que nos deixam sempre na dúvida entre manter os limpa pára-brisas ligados permanentemente para chiar no vidro a cada três escovadelas ou ir ligando sempre que se deixa de ver menos bem, maravilhei-me com a inconsciência de alguns condutores. Uns circulam sem luzes a dois palmos do carro da frente, também desalmado para tirar alguém da forca. Outros mudam de faixa como se a estrada estivesse vazia ou fosse uma pista de corridas mas, acima de tudo, chocam-me os que se esquecem que conduzir à chuva é muito mais perigoso do que o conforto do carro pode levar a acreditar. A música e os pés quentinhos associados ao tempo cinzento parece que fazem crescer palas nos olhos.
Lembrei-me das últimas chuvas em Luanda, quando as ruas em volta do laboratório estavam cobertas de montes de lama vermelha e os buracos cheios de água mudavam todos os dias de sítio. O trânsito era lento, mas havia sempre que tentasse ir mais depressa. A grande diferença era que lá chovia no Verão e estava calor. Aproveitavam-se as abertas para deixar entrar ar pelas janelas ou regatear o preço de umas bananas.
Pensando na chuva
Depois das grandes chuvadas havia sempre quintais inundados com mães e crianças munidos de baldes e vassouras para afastar a água da casa. E hoje essa recordação trouxe-me a da velhota que costumava fumar à porta de casa. Será que nos dias de chuva fumava em casa?