7
02
2012
Há certas memórias que se enraizam em nós sem que saibamos exactamente porque razão. São memórias simples, que devem fazer vibrar o nosso diapasão interior de tal forma que destronam o que achamos ser verdadeiramente importante recordar e acabamos por esquecer.
Se calhar, são estas as verdadeiramente importantes, as que nos moldam a personalidade e a consciência. As outras sejam meras ferramentas para o cérebro, uma simples colecção de conhecimentos adquiridos.
Esta pequena introdução deve-se ao despertar de uma dessas memórias simples mas marcante que foi despertada quando quase dava uma cabeçada num novo cartaz publicitário que instalaram no meio do passeio. Vinha distraído, como é evidente.
Reparei que o anúncio tratava o futuro cliente do produto em questão por um demasiado familiar tu. Decalque do inglês original, em que o tu e o você são substituídos por um singelo you que não compromete ninguém.
Esta demasiada familiaridade senti-a como uma invasão ao meu espaço pessoal, um pouco como a sensação desagradável que se tem quando o vendedor de carros usados insiste em tratar-nos pelo primeiro nome, como se fôssemos amigos de longa data.
A publicidade sizuda, que tratava os clientes por Vexa., e assinava com sinete e rebicoques já lá vai. Desapareceu ao mesmo tempo que as lojas começaram a perder os balcões que separavam os clientes dos comerciantes. Desapareceu com a chegada do pronto-a-vestir, mas um pouco de respeito ainda é o mínimo que se pode pedir. Ninguém pede que continuem a escrever «Queiram fazer a gentileza de experimentar os nossos produtos», mas um modesto «Experimente os nossos produtos» demonstra um bocadinho mais de fineza no trato que um «Experimenta, pá!» Chega a ser grosseiro.
Parece que os anúncios para crianças e adolescentes têm de usar apenas o tu. Diz que as crianças se identificam mais com a mensagem. Talvez seja, mas parece-me mais que seja um daqueles dogmas das agências de publicidade. Insistir neste tratamento demasiado informal para outras faixas etárias é assumir uma relação de proximidade que não existe, ou insinuar que os possíveis clientes não passam de crianças.
Tratam-se por tu
Nestes poucos segundos de reflexão logo a seguir à cabeçada evitada, veio-me à memória um texto reproduzido num livro da instrução primária de cujo autor não me recordo – uma das características destas memórias importantes é a de serem destiladas de todo o acessório.
O texto descrevia um sargento a fazer um exame de matemática aos mancebos para lhes aferir as competências. Como o mancebo vulgar tem uma categoria abaixo de desprezível, o sargento chamou um ao acaso com um quase grosseiro «Tu aí!»
O problema era complicado, mas o mancebo de ar frágil começou a resolvê-lo de uma forma diferente da habitual. Antes que o sargento tivesse oportunidade de reclamar, chegou ao resultado certo. Embasbacado, o sargento perguntou «Mas quem é você?»
O mancebo explicou que era licenciado em matemática aplicada pela Universidade de Coimbra, o que deixou o sargento bastante embaraçado e capaz apenas de se desculpar com um «O senhor já podia ter dito».
É verdade que os portugueses levam gradações de tratamento de deferência quase ao extremo, mas também não se pode cair no exagero para o outro lado e tratar tudo e todos por tu.
4
02
2012
No dia 4 de Fevereiro fechou-se um capítulo na Maternidade Alfredo da Costa, onde fomos tratados com todos os cuidados.
Nessa manhã achei que a data me era familiar. Ouvi-a muitas vezes em Angola e é também o aniversário de um cunhado. Nesse dia esqueci-me de ambos os eventos.
Nado-morto. A vida continua. Tem de continuar. O projecto foi apenas adiado.
25
01
2012
Fazem-se projectos. Sonham-se futuros. Criam-se esperanças a cada pequeno pontapé que se sente. É fruto desejado e amado.
De um momento para o outro tudo se esfuma, tudo se adia. Há que aceitar, porque estas coisas não acontecem apenas aos outros. Os pontapés deixam de ser sinais de alegria. São antes tristes lembranças de que nem tudo está bem. E as festas na barriga são carinhos que magoam, provas de amor que fazem chorar.
Nos últimos dias têm-me vindo muitas vezes à memória o mais curto conto de Hemingway: «For sale: baby shoes. Never worn».
O próximo correrá melhor…
18
01
2012
Durante grande parte de Setembro, Outubro e Novembro, consegui voltar ao ritmo de um artigo diário. Ou, pelo menos, tentei andar perto desse ritmo. Mas depois… depois acabou-se o tempo livre. O Aerograma não ficou esquecido, mas só tem recebido artigos novos a cada semana. Como de costume, há uma série de rascunhos a meio que poderão ser promovidos, mas em data incerta.
Um novo projecto surgiu no horizonte e com uma data limite para entregar. Já por aqui mostrei bocadinhos do trabalho de aprendiz de marceneiro. Uns perguntaram-se se andava a construir um baú, outros se era uma cadeira de "sumapau". Andavam enganados.
A verdadeira razão do projecto prende-se com uma novidade cá em casa que chegou sob a forma de dois risquinhos azuis. Vamos ser pais daqui a uns meses e, mesmo antes de nascer, a criança já me toma o tempo quase todo.
Resolvi estrear-me na paternidade construíndo a primeira cama da descendência. As lições do meu próprio pai ajudaram-me, mas houve muito que tive de reaprender.
Confirma-se que não é um baú
Para a estrutura principal, usei tábuas de lambrim, cavilhas de madeira e um único parafuso – a minha vergonha. Foi para isto que construí a mesa para a tupia. Sem ela, ainda agora estaria de volta de guias e batentes para fazer os rasgos onde tudo encaixa.
Com grade e estrado
Para a grade perdi a preguiça e resolvi fazer espigas e respigas como manda a ordem. É certo que demorei mais para terminar a grade do que para desenhar, fazer e montar a restante estrutura. Mas ficou bonita e a obra feita deixa-me feliz.
Falta fazer as gavetas – ou as prateleiras, dependendo da preguiça – que vão fechar as duas aberturas em baixo, e um estrado de ripas onde assentar o colchão. Para aproveitar os dias mais curtos em que não se pode dar avanço ao resto, há que encerar e polir tudo.
Entretanto, se tudo correr bem, hoje ao final do dia vamos saber se é moço ou moça.
16
01
2012
Durante muitos anos usei exclusivamente um computador portátil para quase tudo. Nos primeiros tempos senti falta do teclado completo dos computadores de secretária, mas, como tudo na vida, fui-me habituando. Agora, que estou em casa, e o portátil passa mais tempo na secretária ligado ao monitor grande, o teclado grande tornou-se indispensável – os computadores portáteis não são desenhados para ser cómodos a escrever.
Aproveitando uma avaria no rato, resolvi perder o amor a alguns tostões e comprar um teclado e rato sem fios novos. A decisão não foi fácil, porque há dezenas de modelos e marcas diferentes. Alguns têm aspecto sólido, outros um toque desagradável e outros ainda, preços de fugir.
Apesar de cada vez apreciar menos os programas da Microsoft, tenho de reconhecer que o equipamento que vendem costuma ser bom. Ratos e teclados duráveis e bastante agradáveis de usar são a norma. Acabei por escolher um conjunto desta marca, embora me tenha causado uma certa estranheza anunciarem como característica decisiva e inovadora ter uma tecla Windows. Julgava que já era de tal modo padrão que ninguém se atrevesse a desenhar um teclado sem ela.
Chegado a casa, desempacotei tudo, meti as pilhas nos compartimentos devidos e liguei o receptor a uma porta USB. Como estava a trabalhar em Linux, temi que a maioria dos botões amaricados que adornam a parte superior do teclado (que servem para abrir o correio ou ajustar o volume ou o zoom) não funcionassem, ou que o rato não respondesse adequadamente. Enganei-me. Tudo funcionou melhor do que o esperado sem sequer ter de configurar nada.
No dia seguinte, liguei o computador e escolhi o Windows como sistema operativo. Para minha surpresa, nem teclado nem rato davam sinais de trabalhar. Ao fim de alguns minutos, começaram a funcionar, mas nem por isso de modo satisfatório. O rato, a principal razão que me levou a comprar também o teclado, funcionava pior que o avariado e os botões adicionais que tão bem funcionavam no Linux, estavam como que paralisados.
Descobri então porque razão havia um CD dentro da caixa. Sem ele, o equipamento Microsoft não funciona devidamente em sistemas operativos Microsoft. Deve ser a primeira vez que alguma coisa funciona muito melhor na concorrência que na própria marca. A Microsoft lá terá as suas razões…