9
03
2012
Não são só os cheiros que despertam memórias gravadas bem fundo, que trazem à tona os factos embrulhados em emoções. Um elemento essencial da paisagem sonora moderna é a campainha dos telefones móveis. Nas cidades já não se ouvem pássaros, ouvem-se melodias mais ou menos discretas que marcam o início de uma breve conversa.
Como cada um pode escolher a sua melodia preferida, é fácil associar alguns toques a certas pessoas. Mesmo que seja o telefone de um desconhecido a tocar, lembramo-nos imediatamente de alguém. Curiosamente, acontece-me lembrar-me apenas das pessoas que me marcaram negativamente. Como exemplo, há um certo toque irritante, que felizmente está a cair em desuso, que me causa arrepios e cabelos eriçado porque imagino logo a voz de um antigo patrão que todos juram merecer internamento em hospício de quartos almofadados. Nem todas as recordações são tão más, obviamente.
Hoje apercebi-me que o meu despertador me traz a sensação de quarto vazio e de cama desconhecida. Habitualmente é o da Cristina que toca e a esse já associo a família. O meu só toca quando preciso de me levantar muito mais cedo que o normal ou em situações especiais. Durante muito tempo tocou porque estava longe e acordava sozinho numa cama que não era a minha, num quarto que não era meu e num país onde era estrangeiro.

Se o meu toca, naqueles segundos em que já estou desperto mas ainda não completamente acordado sou invadido por um sentimento de desorientação e solidão. Como será este quarto de hotel? Terei de desembaraçar-me do mosquiteiro? Quando regresso a casa? O meu despertador traz-me memórias estranhas. A Cristina está ao meu lado, mas tenho de confirmar com o braço esticado que o despertador me fez acordar em casa.
6
03
2012
A cidade da Amadora tem a sua origem na antiga povoação da Falagueira e no crescimento do núcleo urbano em torno das principais vias de comunicação. Primeiramente em volta da Estrada Real, quando a Porcalhota ganhou fama e, mais tarde, em torno da linha de caminho-de-ferro, onde tomou o nome da quinta da Amadora perto da qual se situava o apeadeiro.
Quase todos conhecem a Amadora como uma cidade de história recente, que cresceu desmesuradamente com o resto da linha de Sintra a partir da década de 1960. Os poucos vestígios de outras épocas foram sendo varridos por aterros, demolições e a explosão de betão armado que invadiu os montes do que foram os arrabaldes rurais de Lisboa.

As ruínas
Não é de estranhar que se julgue não haver muito mais para contar que as histórias do já extinto campo de aviação militar ou da chegada do comboio. Os vestígios estão lá, mesmo que tenham sido muito maltratados e até mesmo quase destruídos nas últimas décadas. Os próprios naturais ou moradores de longa data têm esta ideia de tal forma inculcada que fazem um ar incrédulo quando descobrem haver até vestígios romanos no centro da Falagueira.
Resistiram num pequeno recanto que miraculosamente escapou ao betão e foram descobertas aquando das obras para a construção de um supermercado junto dos terrenos da antiga Quinta da Bolacha. Julga-se até que os relatos obscuros de velhos muros e ossos encontrados na abertura de fundações de obras mais antigas ali perto possam corresponder a partes do complexo agora descoberto. Esses perderam-se para sempre, mas ainda lá está o que se julga ter sido uma cozinha construída aproveitando as paredes de uma construção romana mais antiga.
25
02
2012
Uma visita a uma loja chinesa garante sempre uns momentos de descontracção, nem que seja pelas belíssimas traduções que por lá se encontram, como por exemplo, as saídas emergentes, ou o incenso para afastar o diabo.
A última visita foi muito proveitosa. A secção das ferramentas cresceu e ganhou uma série de apetrechos úteis que começam a faltar nas lojas de ferragens tradicionais – esmagadas entre os preços baixíssimos das lojas chinesas e as margens ridículas que as grandes superfícies conseguem gerir.
Um dos novos produtos na loja chinesa cá do bairro é a tarraxa. Um conjunto de machos e tarraxas serve para abrir roscas em furos ou pernos, respectivamente. É tecnologia pouco complexa que necessita apenas de uma mão firme e umas gotas de óleo na rosca que se abre. Quem olha para a embalagem sabe o que vê, mas pode chegar a pensar ter havido engano. Por momentos, aquelas três palavras não fazem sentido, nem qualquer combinação ou permutação em que pensemos. Não fazem sentido nem sequer escritas num papel. Torneira e morre jogo, sem mais.

Machos e tarraxas
Depois de uns momentos de perplexidade acabamos por perceber a lógica. Em Inglês, um conjunto constituído por meia dúzia de machos e igual número de tarraxas e um desandador poderia ser chamado de tap and die set, e uma tradução para lá de literal para Português explica o nome estranho.
22
02
2012
Tal como hoje se aprende Inglês desde a escola primária por se achar importante, no passado aprendiam-se outras coisas que se achavam fazer parte de uma boa instrução para a vida. Algumas cairam no esquecimento por já não fazerem sentido nos dias de hoje e outras apenas porque não há tempo para ensinar tudo.
Quando aprendi a escrever, a única caligrafia ensinada era a cursiva. Gerações anteriores à minha aprenderam esta e, mais tarde, também a caligrafia gótica nas escolas técnica comerciais, por exemplo. Esta era mais complicada, mas adequada a documentos oficiais e essencial para quem almejava trabalhar numa repartição pública ou conservatória, entre outras. Por ter sido posta de parte há décadas, as poucas pessoas que conheço ainda capazes de escrever com relativa desenvoltura são quase todas octogenárias.
Ao contrário da cursiva, a caligrafia gótica implica que cada letra seja desenhada traço a traço, com linhas angulosas que não terminam onde começa a seguinte. Quase sempre se decora a ordem de cada traço para que cada letra saia perfeita. É um trabalho de paciência que requer mais atenção do que os rabiscos do cursivo onde uma aproximação da letra é o suficiente.
À medida que o conhecimento se foi perdendo, a caligrafia gótica no dia-a-dia entrou em extinção. E, como só se sente falta do que se conhece, ninguém se apercebeu de que desapareceu. Actualmente quase só no ecrã do computador se vê e são muito poucos os que a conseguem desenhar com naturalidade.
No entanto, o facto de não se saber como se desenha não quer dizer que tenha deixado de existir. Na Maternidade Alfredo da Costa descobri um resquício da época em que a caligrafia gótica fazia parte da vida. Para identificar as fechaduras de vários armários foram coladas etiquetas com estas letras mais trabalhosas. Passados muitos anos e muitas obras de adaptação do edifício, os armários continuam a uso e as etiquetas também.

Caligrafia gótica
Um pormenor ainda mais curioso foi descobrir que os armários foram pintados recentemente, mas quem o fez teve o cuidado de cobrir as etiquetas com fita para que não se perdesse a letrinha tão bem desenhada. Ao pintor, ter-lhe-ia sido muito mais fácil pintar tudo a eito e colar novas etiquetas, mas optou por preservar um bocadinho da memória do edifício.
16
02
2012
De há uns dias para cá começámos a ouvir martelar nas traseiras todo o dia. Pelo som abafado, suspeitámos de algum vizinho que estivesse a pendurar quadros ou a cortar lenha com pouca convicção, mas o ritmo era estranho e durou o dia inteiro. Felizmente, assim que o Sol se punha, o barulho parava.
Para nosso infortúnio, recomeçava bem cedo e a manhã fazia-se tarde e a tarde fazia-se noite sempre acompanhadas de um poc-poc. Seria chuva? Seria gente? Gente não era certamente e, apesar do muito frio, não chovia há semanas. Também descartámos a hipótese de neve, nem que seja porque a neve não bate assim. Mas, qual tortura chinesa da água, as pancadinhas sucediam-se sem ritmo ou padrão aparente.
Numa tarde, não resistindo à curiosidade de saber o que fazia este barulho irritante e parecendo-me ser mais forte no quarto dos fundos, abri a porta de rompante. Deparo-me com um lustroso melro empoleirado na guarda da varanda, contemplando o seu próprio reflexo na vidraça como se enfrentasse um rival.

Este é o meu território. Capisce?
Infelizmente para ele, este rival é do mais teimoso que existe. Mostra-se irado quando ele se zanga. Olha-o em desafio quando ele lhe tenta mostrar que é mais forte mas, acima de tudo, ataca exactamente ao mesmo tempo que ele. Ao fim de alguns dias, a disputa territorial com o reflexo tornou-se uma obsessão para o pobre melro. Passa lá tanto tempo que até a floreira começa a mostrar uma clareira no meio dos rebentos de menta.

Linguagem mais forte
Quando a intimidação só não chega, lança-se numa nuvem de penas, garras e bico de encontro ao rival. Saem os dois quase ilesos. O do reflexo vai aparentando ficar com as penas em maior desordem e algo cansado. Deve ser bom sinal. Mais uns ataques e abandona a escaramuça. Mas é mais teimoso do que parece. Nunca cede.

A fazer cara de poucos amigos
Quando um ataque falha, coisa que acontece sempre, a intimidação é o passo a seguir. Baixa a cabeça, faz inchar um pouco as penas para parecer maior e lança um olhar furioso. O rival faz exactamente o mesmo. Há-de tentar atacá-lo outra vez.
A Cristina bem me dizia que a janela se sujava mais depressa que as outras. Agora já sabemos que é uma mistura de sebo, poeira e saliva de melro.